Situação de calamidade pública: povos Canela do Maranhão em situação de risco

Centro de Trabalho Indigenista

Nas aldeias Escalvado e Porquinhos, entre os dias 25/11 e 16/12, 19 indígenas morreram e mais de 10% da população, 310 pessoas, está internada.

A quem cabe a responsabilidade desta situação? Quem deve ser processado por esse homicídio doloso?

Por que o provável surto do vírus A/H1N1, comumente conhecido como gripe suína, e coqueluche fugiu ao controle da SESAI, Ministério da Saúde?

Estes não são índios isolados, sem imunidades às nossas doenças e que morriam como moscas quando do contato. São povos com mais de 250 anos de contato com a sociedade nacional, que já passaram pelas epidemias de sarampo e tuberculose. Convivem, como o povo do sertão, com as mazelas da região. Para se chegar a um quadro deste estão abandonados há muito.

A exiguidade territorial que os obriga a viver confinados em praticamente uma aldeia na TI Kanela, onde vivem quase 2.100 pessoas e 800 pessoas na TI Porquinhos, contribuiu para que o vírus se espalhasse rapidamente. O que o Ministério Público vai fazer?

Para saber:

Um provável surto do vírus Influenza A/H1N1, comumente conhecida como gripe suína, e de Coqueluche está acometendo os povos Apanjekrá-Canela e Ramkokamekrá – Canela, da TI Porquinhos e TI Kanela no Maranhão, municípios de Fernando Falcão e Barra do Corda. Os primeiros casos da gripe ocorreram em 26 de novembro na aldeia Escalvado – TI Kanela, com o óbito de duas crianças e internação de mais três crianças nos hospitais de Barra do Corda e Imperatriz. Uma semana depois, no dia 03 de dezembro, outros 27 casos foram identificados na aldeia Porquinhos – TI Porquinhos.

O Distrito Sanitário Especial Indígena do Maranhão (DSEI-MA) enviou uma equipe médica, juntamente com profissionais da Vigilância Epidemiológica e do Laboratório Central de Saúde Pública do Estado do Maranhão para prestar o devido serviço de atendimento à saúde indígena e realização de exames conclusivos para confirmação do diagnóstico sob suspeita.

Mas, atenta ao drástico quadro de saúde dos povos Canela, a FUNAI – Coordenação Regional Araguaia e Tocantins, alertada pelo Conselho de Direitos Humanos do Estado do Maranhão e em diálogo com lideranças indígenas, servidores locais e com a coordenadora do Polo Base de Saúde de Barra do Corda,  mobilizou equipe técnica própria para averiguar a grave situação de saúde. A equipe da FUNAI concluiu que as informações repassadas pela coordenação do Pólo Base de Saúde estavam em completo descompasso com o quadro real encontrado, isto é:

i) a situação não estava sob controle;

ii) a equipe médica multidisciplinar formada por um médico, duas enfermeiras e dois técnicos de enfermagem é insuficiente para o atendimento necessário;

iii) a estrutura de atendimento é precária, dispondo, por exemplo, de apenas um veículo para remoção dos enfermos;

iv) que os indígenas internados no Pólo Base de Saúde de Barra do Corda eram alimentados apenas com um refeição por dia;

v) que a prevenção e vacinação dos indígenas durante o corrente ano não foi realizada em razão do envio de medicamentos com data vencida.

Na aldeia Escalvado – TI Kanela, os sintomas do vírus se fazem presentes em crianças de 450 famílias.  Já na aldeia Porquinhos – TI Porquinhos, crianças de 56 famílias são alvo de tratamento. A equipe médica local vem administrando medicamentos para o combate aos sintomas. Contudo, os medicamentos, a infraestrutura para atendimento e equipe técnica – que tem trabalhado à exaustão, fazendo 132 consultas por dia – não é suficiente para prestar o devido atendimento ao conjunto dos enfermos. São necessários mais médicos, técnicos de enfermagem, medicamentos, viaturas e medicamentos para conter o cenário. Segundo os dados da saúde, vieram a óbito 09 indígenas, entre os dias 25 de novembro e 16 de dezembro, informação esta considerada subestimada pelos Canela que apresentam o número de 19 indígenas falecidos nesse período. Além destes dados, 310 indígenas são foco de tratamento.

A FUNAI por meio da sua Coordenação Regional do Araguaia e Tocantins vem solicitando, em caráter de urgência, o apoio do Ministério da Saúde e da Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI para fortalecer a equipe local e a estrutura de atendimento, de modo a fazer frente ao gravíssimo quadro de saúde.

Para entender a crise:

Informações:

Os Apanjekrá e Ramkokamekrá vivem uma situação semelhante em relação às condições do sistema de atendimento à saúde, sob a responsabilidade do DSEI do Maranhão. Este DSEI compreende dois complexos socioculturais e linguísticos completamente distintos: os povos de língua Tupi – os Awá-Guajá, povo de recente contato, os Urubu-kaapór e os Tenetehara, conhecidos como Guajajara, que representam quase 80% desse total; e os falantes da língua Jê-Timbira, representados no Maranhão pelos povos Krikati, Gavião, Krenjê, Apanjekrá e Ramkokamenkrá.

O Polo-Base de referência dos Apanjekrá e Ramkokamekrá está localizado no município de Barra do Corda, à 440 km de São Luis do Maranhão, sede do Distrito Sanitário. No referido Polo-Base é oferecido atendimento primário (município referência tipo 1), o quadro de profissionais conta com agentes indígenas de saúde/AIS; agentes indígenas de saneamento básico/AISAM; técnicos de enfermagem; enfermeiras, odontólogo, motoristas e técnicos administrativos, mas não há médicos contratados.

A situação:

A Casa de Saúde Indígena – CASAI – Apanjekrá está em péssimo estado e a Ramkokamekrá foi desativada. Nas aldeias ficam permanentemente os AIS, o AISAM, sem formação continuada e técnico de enfermagem. As farmácias/posto de saúde funcionam em prédios velhos e sem nenhuma infraestrutura de atendimento. Situação esta que será mote de solenidade a ser realizada – em meio à crise – para inauguração de nova estrutura do posto de saúde da aldeia Escalvado pelo chefe do DSEI-MA e Prefeito de Fernando Falcão. Mais do que uma piada de mau gosto, trata-se de uma escancarada manobra política.

A precariedade dos postos de saúde estão para além da infra estrutura. Os medicamentos existentes, nem todos dentro dos prazos de validade, são principalmente analgésicos e antibióticos. Não são fornecidos todos os medicamentos que os técnicos julgam necessários e não há instrumentos cotidianos básicos para suturas, medidas de pressão arterial, soro antiofídico, etc. E, não há qualquer diálogo entre o sistema de atendimento à saúde do órgão oficial responsável e o sistema de medicina tradicional dos Apanjekrá e Ramkokamekrá, o que cria conflitos em relação aos tratamentos.

Histórico recente do descaso:

Em 2003, quando o órgão responsável pela saúde indígena era a Fundação Nacional
da Saúde – FUNASA, foi firmado um Termo de Ajuste de Conduta/TAC entre a FUNASA e os povos indígenas do Maranhão para a estruturação e melhoria do atendimento à saúde.

Em 2008 o Ministério Público esteve presente nas TIs Porquinhos e Kanela para a realização de um levantamento da situação de saúde em diálogo com o cumprimento das determinações do TAC – situação esta inalterada.

Em 2010 com a reformulação da gestão da saúde indígena e criação da Secretaria Especial de Saúde Indígena – SESAI, houve um sopro de esperança que logo se dissipou. As comunidades de ambas as Terras Indígenas seguem atestando a profunda insatisfação com o atendimento prestado e com a manutenção de funcionários não desejados no quadro que, a despeito do desempenho profissional contestado em razão do mal uso de viaturas e dos recursos financeiros destinados para o serviço em questão, seguem contemplados por contratos de trabalho vinculados aos convênios firmados pelo Ministério da Saúde junto à Missão Evangélica Caiuá para o atendimento de saúde a esses povos. A Missão Cauiá é vinculada à Igreja Presbiteriana do Brasil, com sede em Dourado-MS e com representação em São Luis. Desde novembro de 2011 a Missão tem a responsabilidade administrativa de 17 dos 34 Distritos existentes, o que totaliza 62% dos DSEIs do Brasil.

Em 2012, este descaso histórico do atendimento oficial à saúde aos Apanjekrá-Canela e Ramkokamekrá – Canela foi alvo de mobilização política das lideranças que acionaram o Ministério Público Federal, via Procuradoria da República no Maranhão, para protocolar denúncias sobre a drástica situação de saúde desses povos atrelada ao completo sucateamento da infra estrutura de atendimento e à atuação truculenta de profissionais contratados. Esta articulação resultou numa reunião entre representantes do MPF, DSEI-MA e lideranças Canela para encaminhar soluções concretas para a melhoria da política de atendimento saúde, como: a oficialização de novos representantes no Conselho Distrital de Saúde Indígena/CONDISI para o controle social efetivo das ações prestadas pelo DSEI-MA, a renovação dos quadros administrativos e técnicos, o pleno funcionamento do Pólo-Base e CASAIs estruturadas e independentes para cada povo.

Desde então dois anos se passaram e o sistema de atendimento à saúde aos Apanjekrá e Ramkokamekrá, antes ruim, atingiu um nível drástico e calamitoso com o atual quadro de óbitos e tratamento precário no presente contexto de surto de Influenza A/H1N1 – situação esta resultante do contínuo descaso e negligencia da política de saúde indígena executada junto a esses povos.  Eis a pergunta: Ministério Público, quem vai ser processado por homicídio doloso? O DSEI – MA? A Missão Caiuá? O Ministério da Saúde?