Quero acreditar que a Presidente da República vetou, por erro, projeto que melhora a educação indígena no país

Luis Donisete Benzi Grupioni

No dia 29 de dezembro de 2015, a Casa Civil da Presidência da República enviou ao Senado Federal a mensagem de no. 600 vetando integramente o Projeto de Lei 5.954 de 2013 (No. 186 de 2008 no Senado Federal), aprovado pelo Congresso Nacional, após ouvir o Ministério da Educação (MEC) e o Ministério do Planejamento, Orçamento e Gestão (MPOG), por contrariedade ao interesse público.

A pergunta que não quer calar: Que interesse público esse projeto contraria?

A meu ver, nenhum. Ao contrário, o projeto representa um avanço na legislação de educação escolar indígena.

Vamos aos fatos.

Em 2008, o Senador Cristovam Buarque apresentou ao Senado Federal um projeto para alterar o artigo 79 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB). Este ganharia um novo parágrafo, o 4º., que estabelece que os processos de avaliação educacional respeitarão as particularidades culturais das comunidades indígenas.

O que há de estranho aqui que possa contrariar o interesse público?

A educação escolar indígena é diferenciada por lei (Constituição Federal, LDB, PNE…), e por que não deveria ser objeto de uma avaliação diferenciada? Inúmeras crianças indígenas são alfabetizadas primeiro na sua língua materna para depois aprenderem o português. Não seria esperado que fossem avaliadas pelo que foram ensinadas?

O Senador Cristovam Buarque acha que sim. E justificou desta forma a proposição de seu projeto: Ora, diante dessas prescrições e do esforço empreendido pelos educadores para que a instituição escolar respeite a diversidade cultural dessas comunidades, não se sustenta a tese de que os estabelecimentos de ensino e os estudantes indígenas devam ser submetidos aos mesmos processos de avaliação das demais escolas e alunos. É preciso criar procedimentos avaliativos que considerem as particularidades de cada comunidade indígena. Fatores como a relação entre as línguas maternas e a portuguesa e a importância da oralidade de cada cultura devem ser respeitados e levar à elaboração, pelas autoridades competentes, de avaliações específicas”.

Mas ao que parece, a Casa Civil, o MEC e o MPOG entendem que não, que isso contraria o interesse público.

Voltemos ao projeto.

Ao ser analisado na Comissão de Direitos e Humanos e Legislação Participativa (CDH) do Senado Federal, a Senadora Fátima Celeide, acatando o projeto, sugeriu que ele fosse complementado, incluindo-se uma alteração no artigo 32 da LDB. O que diz esse artigo? Ele prevê que o ensino fundamental regular será ministrado em língua portuguesa, assegurando às comunidades indígenas a utilização de suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem. Esse artigo da LDB de 1996 não tem nada de novo, uma vez que apenas é a repetição do artigo 210 da nossa Constituição Federal, de 1988, que diz a mesma coisa.

O que propôs a Senadora de alteração nesse artigo?

Que não somente no ensino fundamental, mas na Educação Básica se assegurasse a essas comunidades poderem utilizar suas línguas maternas e processos próprios de aprendizagem.

Insensatez? Ataque ao interesse público?

Não! Apenas adequava-se a lei à realidade de algumas escolas indígenas do país, onde a língua indígena tem sim sido usada como língua de instrução para além do ensino fundamental.

A alteração proposta pela Senadora foi acolhida pelos demais Senadores.

O projeto seguiu, então, para a Comissão de Educação, Cultura e Esporte (CE), onde deveria ser relatado pela Senadora Gleise Hoffmann, porém, como esta havia assumido a Casa Civil, ele foi distribuído ao Senador Valdir Raupp. O Senador, ao analisar o projeto, julgou por bem expandir a mudança no artigo 32, que passou a garantir o uso das línguas maternas e processos próprios de aprendizagem também à educação profissional e ao ensino superior.

Insensatez? Ataque ao interesse público?

Não! De novo se adequava o texto da lei à realidade, já que são conhecidos, para ficar num exemplo, trabalhos de conclusão de curso em licenciaturas e graduações, produzidos, escritos e defendidos em línguas indígenas.

Em parecer aprovado pela Comissão, com parecer ad hoc agora sobre a lavra do Senador Paulo Paim, escreveu-se: Corroborando essa orientação, nota-se que o Projeto de Lei em debate evidencia que o reconhecimento de uma educação própria, específica e diferenciada a cada povo, demanda instrumentos de avaliação educacional que respeitem as particularidades da educação escolar de cada povo quanto aos usos linguísticos, ensino intercultural e projetos político-pedagógicos das escolas indígenas. Dessa forma, não se vislumbra a possibilidade de cumprimento dos objetivos traçados na legislação educacional, se não forem observada as particularidades culturais dos alunos indígenas no processo educativo, entre o qual se inclui o da avaliação. Todavia, entendemos que a especificidade de processos de avaliação da educação escolar indígena tenha seu alcance ampliado à educação básica, de acordo com a Emenda Constitucional nº 59, à educação profissional e ao ensino superior. Citar o uso das línguas originárias somente no ensino fundamental pode acarretar questionamentos dos sistemas de ensino quanto a esse direito linguístico restrito a essa etapa de ensino que, na prática, hoje, das escolas indígenas, dos processos formativos de docentes indígenas e na formação superior, é demandado com ênfase pelos estudantes e lideranças indígenas”.

Bingo!

Com
tal formulação, este projeto de lei insere no corpo da legislação educacional indígena iniciativas bem sucedidas já em curso em alguns lugares do país, e que deveriam ser expandidas para que de fato se avance na proposta de uma educação indígena diferenciada, de qualidade e que valorize as línguas indígenas.

Em 11 de julho de 2013, o Senador Renan Calheiros assina o projeto e o envia à Câmara dos Deputados. Nesta Casa o projeto passa pelas comissões de Direitos Humanos e Minorias; Educação e Constituição e Justiça e da Cidadania, onde recebe pareceres favoráveis dos relatores: Deputados Roberto de Lucena, Jean Wyllys, Maria do Rosário e Pedro Cunha Lima, sendo aprovado sem nenhuma mudança. 

O projeto é remetido de volta ao Senado e é, então, enviado para a Presidência da República, no início de dezembro de 2015, depois de tramitar por mais de 7 anos no Congresso Nacional, e ser apreciado em inúmeras comissões legislativas.

Ao recebê-lo, a Casa Civil, ouvindo o MEC e o MPOG, em meros 20 dias, considera que o projeto contraria o interesse público e devolve o texto do projeto de lei, vetando-o, ao Congresso Nacional, com a seguinte argumentação: 

“Apesar do mérito da proposta, o dispositivo incluiria, por um lado, obrigação demasiadamente ampla e de difícil implementação por conta da grande variedade de comunidades e línguas indígenas no Brasil. Por outro lado, a obrigação de se ministrar o ensino profissionalizante e superior apenas na língua portuguesa inviabilizaria a oferta de cursos em língua estrangeira, importante para a inserção do País no ambiente internacional. Por fim, a aplicação de avaliação de larga escala poderia ser prejudicada caso se tornasse obrigatória a inclusão de todas as particularidades das inúmeras comunidades indígenas do território nacional.

Essas, Senhor Presidente, as razões que me levaram a vetar o projeto em causa, as quais ora submeto à elevada apreciação dos Senhores Membros do Congresso Nacional.

Que vergonha!

A Casa Civil, desconhecendo que ele já é prática em vários lugares do território nacional, argumenta que o projeto é de difícil implementação pela grande variedade de comunidades e línguas no país! Mas isso não é preceito constitucional? Está no artigo 215 da Constituição Federal que reza que “§  O Estado protegerá as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional”. Tem muita variedade de povos e línguas? Tem sim, tinha mais ainda quando os portugueses chegaram aqui e durante todo o processo de ocupação do território brasileiro. Isso é fato, é riqueza nacional, mundial, da humanidade. Infelizmente, parece que a Casa Civil acha um problema termos muitos povos indígenas e muitas línguas. Não estranharia que possam achar um problema ter territórios indígenas devidamente demarcados para eles.

Está lá, também na Constituição, que é obrigação do Estado respeitar esses povos, suas culturas, suas línguas e seus bens. É só ler o artigo 231 da nossa Constituição: “Art. 231. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.

Portanto, se são poucos ou se são muitos, não interessa o número, senhores! É dever do Estado e, portanto, de qualquer equipe de governo que venha a governar este país, cumprir a Constituição e toda a legislação correlata. Dá trabalho? Ah, dá. Mas é assim que se faz num país sério: cumpre-se a lei.

Não bastasse isso, vem a pérola do veto. Rememorando: “Por outro lado, a obrigação de se ministrar o ensino profissionalizante e superior apenas na língua portuguesa inviabilizaria a oferta de cursos em língua estrangeira, importante para a inserção do País no ambiente internacional”.

Se entendi bem, os incautos da Casa Civil entenderam que o projeto obrigaria o ensino profissionalizante e superior ser apenas na língua portuguesa. Senhores: está na Constituição que sim, o ensino é em português, garantindo aos índios o uso de suas línguas maternas. Carece de lógica afirmar que o projeto inviabilizaria o ensino de língua estrangeira. De onde tiraram tal aferição? O projeto apenas faculta aos índios a possibilidade de utilizarem suas línguas maternas nessas outras modalidades e níveis de ensino. Se fizesse sentido o que a Casa Civil escreve, então teríamos um problema na Constituição, porque é lá que está dito que o ensino no nosso país é na língua portuguesa, nossa língua nacional. E mesmo assim, o ensino de inglês, de francês e de espanhol, para ficar em algumas línguas, é amplamente praticado em todo o território nacional. Por outro lado, desconheço graduações e ensinos profissionalizantes ministrados integralmente em língua estrangeira. Portanto, a interpretação da Casa Civil não faz nenhum sentido.

Quanto à inserção do país no ambiente internacional, preocupação justa, caberia dizer que o Brasil ficaria bem na fita internacional se respeitasse e protegesse os povos indígenas, cumprindo e fazendo cumprir as leis e impedindo que a barbárie atingisse inocentes como o bebê Vitor Pinto Kaingang, degolado nos braços da mãe enquanto era por ela amamentado, nesse mesmo mês de dezembro, em que a Casa Civil impediu um importante avanço na legislação educacional indigenista.

E por fim, a última parte desta lamentável mensagem presidencial: a de que se prejudicaria a avaliação em larga escala se todas as particularidades das comunidades indígenas do país tivessem que ser consideradas.

Senhores, sejamos sérios! Primeiro, as avaliações nacionais nunca nos ajudaram em nada para aferir a qualidade do ensino nas aldeias. O próprio INEP do MEC, responsável por tais pesquisas, já se deu conta disso, tendo inclusive, em anos recentes, contratado estudos para repensar a avaliação das escolas indígenas. Segundo, que diferença faria para as avaliações nacionais a retirada das escolas indígenas? Num universo de mais de 38 milhões de estudantes no país, que diferença faria deixar de fora os poucos mais de 250 mil alunos indígenas, ou não considerar as 3 mil escolas indígenas num universo de quase 200 mil escolas? Não chegam nem 0,5%. Por fim, se o Estado brasileiro desenvolve uma política de educação diferenciada para os povos indígenas, ele tem que construir mecanismos próprios e diferenciados de avaliação dessas escolas, simplesmente pela razão de que o ensino é, ou pelo menos deveria ser, diferenciado das demais escolas do país.

E assim termina o veto, que deverá ser apreciado pelo Congresso Nacional, confirmando-o ou derrubando-o.

Difícil crer no texto dessa mensagem presidencial ao Congresso Nacional. É o tipo de texto que, como se diz por aí, dá vergonha alheia. Ainda mais quando pensamos que foi o atual Congresso Nacional, com todos os ataques que tem feito aos direitos indígenas, que aprovou, após 7 anos de tramitação, o Projeto 5.954 para ser, em menos de 1 mês, jogado às favas pelo Executivo.

Senhores, se há algo nessa história que contraria o interesse público é a mensagem de veto preparada pela Casa Civil. O projeto 5.954 certamente não contraria o interesse público. Já a mensagem de veto é um atentado à inteligência, ao bom senso, à sensatez e à seriedade que deveriam marcar os documentos oficiais e o trato do interesse público.

Se fosse possível voltar no tempo, tomaria a liberdade de sugerir que a Casa Civil emitisse um pedido de desculpas, dizendo que a mensagem de no. 600 foi um equívoco da burocracia, que atolada de trabalho no final do ano, misturou papéis e induziu a Senhora Presidente da República ao erro, a colocar sua assinatura num documento que não era digno para tal. E remeter ao Congresso Nacional uma nova mensagem, aprovando o Projeto 5.954 de 2013, que de modo suprapartidário, recebeu pareceres favoráveis de parlamentares da base do governo e da oposição e, se não fosse pedir muito, acompanhado de contundentes elogios, por fazer avançar o direito a educação diferenciada no Brasil. Com tal atitude se faria jus a fala da Presidente no encerramento da I Conferência Nacional de Política Indigenista, em que afirmou seu compromisso com a Educação Escolar Indígena ao anunciar várias medidas, que se coadunam com o presente projeto de lei.

O Ministério da Educação também ficou mal na fita. Precisa dar satisfações à comunidade educacional brasileira, pois se de fato foi ouvido e se manifestou contrariamente ao projeto, está precisando, urgentemente, revisar sua política educacional e programas voltados às escolas das aldeias. O projeto em pauta está totalmente condizente com os princípios que estruturam a Política Nacional de Educação Escolar Indígena que, diga-se de passagem, vem se enfraquecendo nos últimos anos. Consultar os membros de sua Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena, numa atitude de cumprimento da Convenção 169, que é lei no Brasil, não teria sido má ideia, é para isso e outras coisas que servem tais instâncias.

O governo perdeu a oportunidade de mostrar com atos concretos que suas boas intenções não se resumem ao plano discursivo. A Casa Civil, mais uma vez, demonstrou que não está
do lado dos índios.

Para reparar o erro cometido, cabe a todos nós que lutamos por uma educação escolar indígena de qualidade neste país, nos voltarmos para o Congresso Nacional, para que seja derrubado, em plenário, esse vergonhoso e equivocado veto.

 

Luis Donisete Benzi Grupioni

Representante da Sociedade Civil na Comissão Nacional de Educação Escolar Indígena do Ministério da Educação

Coordenador do Iepé – Instituto de Pesquisa e Formação Indígena e secretário executivo da Rede de Cooperação Amazônica – RCA