Para a história não se repetir

Por Lígia Apel/ CPI-Acre

Aquela história de que uma varinha apenas é muito fácil quebrar, mas muitas juntas é mais complicado (se não impossível) de serem partidas, pode ser antiga, mas ninguém pode negar que sempre foi e continua sendo um ícone de uma das estratégias mais eficientes para se combater qualquer tipo de dominação, de exploração.

Em se tratando de povos indígenas isolados, é pouco (ou nada) provável que essa premissa simbolize uma defesa ou uma resistência, por eles mesmos. Afinal, justamente por estarem em isolamento voluntário, não possuem a dimensão do perigo que os ameaça e, portanto, não está ao seu alcance se unir a outras populações também vulneráveis, para resistir ao invasor. Estradas, petróleo, gás, madeireiras, trem, minérios. Nada disso faz parte da sua visão de mundo. Nem tampouco, riquezas, dinheiro, economia, desenvolvimento, integram o seu universo. Mas, tudo isso está ameaçando a sua existência.

A única riqueza que possuem é aquela que lhes fornece vida: a floresta. Na relação intrínseca que estabelecem com a floresta, esses povos originários usam os recursos naturais conservando a biodiversidade de modo, indiscutivelmente, sustentável. Num momento em que o mundo busca entender as mudanças climáticas e demais alterações pelas quais o planeta está passando, também é indiscutível que esses povos prestam um serviço ambiental real para a humanidade.
Além disso, as formas como se relacionam com a natureza fornecem indicativos concretos para a definição de políticas específicas para as populações indígenas e tradicionais da Amazônia.

Já há cinco anos que indígenas desta região, organizações indígenas e indigenistas, bem como instituições do governo brasileiro, como a Frente de Defesa Etnoambiental Rio Envira da Funai, vêm colocando em evidência para o mundo, os povos isolados da região de fronteira do Acre com o Peru, na tentativa de unir esforços para fazer o que eles não conseguem por conta própria: se proteger de invasores que destroem seus territórios, de grandes empreendimentos e de leis e acordos governamentais contrários a sua realidade e necessidades.

Agora, pense na dificuldade!

Invasões territoriais, grandes empreendimentos, leis e acordos contrários à realidade e às necessidades locais não são ameaças apenas para os índios isolados. Esta é uma guerra de toda a sociedade.  Quanto às invasões, elas acontecem e a fiscalização é feita por conta própria; quanto às obras, já estão todas planejadas e muitas delas, já iniciadas; quanto aos acordos, estão sendo feitos sem consulta consistente às populações tradicionais e indígenas da região, a exemplo do acordo feito em 2009 entre Lula e Alan Garcia pra a construção da ferrovia, na região do Alto Juruá. Quanto às leis, as que estão em processo de definição, escancaram o retrocesso: no Brasil, a reformulação do Código Florestal; no Peru, possíveis decretos que extinguem reservas territoriais de índios isolados.

Com todos os seus meandros, o que está posto é: ou a adoção de políticas ambientais sérias, que promovam um desenvolvimento para todos com sustentabilidade real, ou a adoção de políticas meramente econômicas para uns poucos detentores do poder econômico.

Se a complexidade é tamanha para a sociedade conhecida, e se está tão difícil para as comunidades serem ouvidas e inseridas no processo, imagine incluir os povos isolados nisso tudo. Sim, porque é fatídico, toda e qualquer definição vão recair sobre eles, colocando-os, ou não, em risco de sobrevivência.

Se pelo lado peruano, a violação dos direitos humanos e territoriais dos povos indígenas em isolamento voluntário devido à sobreposição de concessões florestais e petrolíferas junto à ausência de políticas públicas diferenciadas, bem como uma falta de articulação dos dois governos para os problemas fronteiriços, pode levar ao retorno de um dos períodos mais violentos da história da região: as correrias, os contatos forçados, a disseminação de doenças, estupros e a escravidão trazidas pelas frentes caucheira e seringalista.

Traçar estratégias de proteção aos povos indígenas isolados que vivem nesta zona de fronteira para impedir essa volta ao passado foi o objetivo da “Reunião de Coordenação sobre as Ameaças à Reserva Territorial de Madre de Dios, na Bacia Hidrográfica do Rio Acre, Fronteira Binacional Brasil/Acre-Peru/Madre de Dios”, realizada no Centro de Formação dos Povos da Floresta, da Comissão Pró-Índio do Acre, em Rio Branco, nos dias 26 e 27 de maio de 2011.

Comunicação, intercâmbio, trabalho conjunto e participação na definição das políticas para a Amazônia foram as palavras chaves das ações planejadas e, ao final das discussões, foi redigido um documento ao público para conhecimento da real situação e dos problemas, ameaças e necessidades enfrentadas. Conheça-o e veja quais instituições se uniram ao feixe de varinhas para proteção dos povos indígenas isolados que vivem nesta zona de fronteira.

 

DOCUMENTO FINAL DA REUNIÃO BINACIONAL EM DEFESA DOS DIREITOS INDÍGENAS

PROTEÇÃO DOS POVOS ISOLADOS E SEUS TERRITÓRIOS

Os participantes da “Reunião de Coordenação Sobre as Ameaças à Reserva Territorial de Madre de Dios, na Bacia Hidrográfica do Rio Acre, Fronteira Binacional Brasil/Acre-Peru/Madre de Dios”, realizada no Brasil, nos dias 26 e 27 de maio de 2011, no Centro de Formação dos Povos da Floresta – CPI/AC, em Rio Branco-AC, com o objetivo de propor estratégias de proteção aos povos indígenas isolados que vivem nesta zona de fronteira, colocam em evidência diversas situações que estão deixando, cada vez mais, vulneráveis os povos em estado de isolamento voluntário que ali vivem.

As ameaças prementes a estes povos são várias, destacando-se a construção da estrada que liga Iñapari a Puerto Esperanza; a concessão pelo governo peruano de consideráveis extensões de floresta para a prospecção e exploração de petróleo e gás; atividades madeireiras legais e ilegais; a intensificação das atividades de narcotráfico na área de fronteira; a presença de missionários e de pesquisadores de forma irregular, a instalação desordenada de mineradoras, a anunciada construção de hidrelétricas, bem como os grandes projetos de integração regional, que estão provocando reordenamentos nos territórios tradicionais dos povos indígenas na região de fronteira.

A preocupante situação de violação dos direitos humanos e territoriais dos povos indígenas em isolamento voluntário que vivem do lado peruano, em decorrência destas ameaças reais, pode resultar em correrias, contatos forçados, doenças, numa nítida repetição da história das frentes caucheira e seringalista na região. Além disso, há uma falta crônica de políticas públicas diferenciadas, inclusive transfronteiriças, para os povos indígenas em isolamento voluntário e os já contatados, residentes dentro de parques nacionais.

No Brasil, apesar da proteção assegurada pela legislação brasileira e pelas ações da Coordenação Geral de Índios Isolados e de Recente Contato – CGIIRC, da Fundação Nacional do Índio – FUNAI, no Estado do Acre é eminente a possibilidade de conflitos armados entre povos indígenas isolados e populações do entorno de seus territórios (povos indígenas Kaxinawá, Madijá e Ashaninka e famílias de seringueiros e agricultores) provocada porque as pressões externas aos territórios dos povos indígenas isolados, particularmente no Peru, geram deslocamentos territoriais dessas populações. Esta situação revela novos desafios para a política de proteção aos povos indígenas isolados no Brasil e a necessidade de ampliar o diálogo com esses atores do entorno.

A partir das discussões e depoimentos de indígenas, indigenistas da sociedade civil e de órgãos governamentais reunidos nestes dois dias, foram definidas estratégias com o objetivo de articular ações para a proteção dos povos indígenas isolados e promoção de seus direitos, no sentido de contribuir para o aprimoramento das políticas públicas a eles dirigidas. É dever dos Estados brasileiro e peruano garantir aos povos indígenas isolados e de recente contato a integridade e intangibilidade de seus territórios, bem como as demais condições necessárias para sua reprodução sociocultural, por meio de ações pautadas pelo princípio da autodeterminação.

Assim, tornamos públicas as preocupações, os anseios e as ações concretas que este coletivo tem como proposta:

  • Intercâmbio de informações referentes à presença de índios isolados na fronteira Madre de Dios-Acre;
  • Intercâmbio de experiências e organização de ações conjuntas nas bacias dos rios Yaco, Acre, Tahuamanu e Las Piedras;
  • Reforçar a comunicação institucional para uma agenda articulada sobre povos isolados;
  • Trabalhar conjuntamente estratégias de incidência política com o objetivo de sensibilizar e propor políticas públicas a favor dos povos indígenas isolados.

Consideramos oportuno que as organizações da sociedade civil e as instituições governamentais brasileiras e peruanas, por meio de instrumentos legais, implementem medidas concretas para a garantia legal, a vigilância e a efetiva proteção dessas reservas territoriais, de forma a evitar a continuidade da vulneração dos direitos territoriais, sociais e culturais de alguns dos últimos povos indígenas isolados que hoje vivem ao longo da fronteira Brasil-Peru.

Por fim, manifestamos nossa preocupação em relação à informação prestada pelos representantes de FENAMAD e CIPIACI, de informações de funcionários do Instituto Nacional de los Pueblos Indígenas, Andinos, Amazónicos y Afroperuanos (INDEPA), do Governo do Peru, sobre possíveis atos administrativos com o objetivo de anular a Reserva Territorial Murunahua e revisar os limites da Reserva Territorial Isconahua.

Trabalhos realizados em caráter permanente pela FUNAI na região do alto Rio Envira confirmam que os territórios dos povos indígenas isolados se estendem em ambos os lados da fronteira Brasil-Peru. Deste modo, qualquer medida que implique em maior vulnerabilidade destes territórios em um dos lados da fronteira terá consequencias diretas sobre o outro lado. Portanto, é fundamental a implementação, por parte do INDEPA e da FUNAI de medidas concretas para a garantia legal, a vigilância e a efetiva proteção das reservas territoriais Murunahua e Isconahua, de modo a assegurar os direitos territoriais, sociais e culturais dos povos indígenas isolados que hoje vivem em ambos os lados da fronteira Brasil-Peru, em consonância com instrumentos jurídicos internacionais dos quais os dois países são signatários.

Por outro lado é oportuno ressaltar a necessidade de que as diplomacias Brasileira e Peruana desencadeiem esforços no sentido de definir políticas
públicas transfronteiriça de proteção aos indígenas em isolamento voluntário que habita a região em foco.

Rio Branco – AC, 27 de Maio de 2011

ASSOCIAÇÃO DO POVO INDÍGENA DO RIO HUMAITÁ

ASSOCIAÇÃO DO POVO INDÍGENA MANCHINERI

ASSOCIAÇÃO COMUNITÁRIA YAMINAWA DO ALTO ACRE

FEDERACION NATIVA DE MADRE DE DIOS Y AFLUENTES

COMITÉ INDÍGENA INTERNACIONAL PARA LA PROTECCIÓN DE LOS PUEBLOS EN AISLAMIENTO VOLUNTÁRIO Y CONTACTO INICIAL EN AMAZONÍA, EL GRAN CHACO Y LA REGION ORIENTAL DE PARAGUAY – CIPIACI

COMISSÃO PRÓ-ÍNDIO DO ACRE

ASSOCIAÇÃO SOS AMAZÔNIA

CENTRO DE TRABALHO INDIGENISTA

COORDENAÇÃO GERAL DE ÍNDIOS ISOLADOS E DE RECENTE CONTATO – FUNAI

FRENTE DE PROTEÇÃO ETNOAMBIENTAL ENVIRA

COORDENAÇÃO REGIONAL DE RIO BRANCO – FUNAI

ASSESSORIA ESPECIAL DE ASSUNTOS INDÍGENAS DO GOVERNO DO ACRE
Notícia publicada no SITE  DA  CPI-ACRE