Direitos dos Povos Indígenas: O Que Muda com as Eleições 2014?

Rafael Nakamura

Para conferir a versão em inglês do texto acesse: Indigenous People Rights: What Changes with the 2014 Brazilian elections?

O período de eleições presidenciais em 2014 é um ótimo momento para especularmos sobre o que podemos esperar da política indigenista brasileira nos próximos quatro anos. Pressionados pelo agronegócio, um setor que corresponde a 23% do Produto Interno Bruto brasileiro e a 44% do total das exportações nacionais, o discurso público dos principais candidatos ainda é tímido na defesa dos direitos dos povos indígenas. Os altos investimentos de empresários pecuaristas e produtores rurais no financiamento das campanhas de Dilma, Marina e Aécio sinalizam que para o setor pouco importa quem vença, desde que seus interesses particulares estejam preservados. A JBS, líder mundial no processamento de carnes, está entre os principais doadores de campanha dos três candidatos, em uma eleição apontada como a mais cara desde a redemocratização do país. No Congresso, a bancada ruralista deverá seguir forte, elegendo seus candidatos e garantindo ainda mais espaço para brigar por seus interesses. Destaque ainda para as empresas mineradoras, interessadas em alterar a lei que regulamenta a mineração em áreas de demarcação de terras indígenas. O setor também está entre os que mais doaram para as disputas pela câmara dos deputados e pela presidência.

Em sua carta de intenções, a candidata do Partido dos Trabalhadores (PT), Dilma Rousseff, que concorre à reeleição, cita o papel fundamental das populações tradicionais na preservação de regiões com importante presença de biodiversidade. Apesar disso o programa não cita em nenhum momento a demarcação de Terras Indígenas (TI) e Quilombolas, única forma de fortalecer essas populações e garantir a preservação de seus territórios. Nos debates em que participou, Dilma defende a resolução de conflitos nas TIs com presença de produtores rurais, preservando interesses de ambas as partes. Ao que tudo indica, caso consiga a reeleição, o Ministério da Justiça de Dilma seguirá implementando mesas de diálogo, modelo inaugurado em sua gestão. Com a proposta de promover o “ajuste de direitos” essas mesas na verdade colocam os direitos dos povos indígenas como moeda de troca, caso das negociações envolvendo a TI Mato Preto, que foi reduzida de mais de 4 mil para cerca de 600 hectares, atendendo as exigências dos produtores da região. Com as negociações travadas o governo Dilma homologou apenas uma TI em 2013, a TI Kayabi entre o Mato Grosso e o Pará. Existe ainda a sinalização de que o processo de demarcação de terras possa ser modificado, retirando a competência exclusiva da Fundação Nacional do Índio (Funai). Além da já citada JBS, a campanha de Dilma contou com grandes investimentos da Cutrale, uma das maiores do mundo no ramo da citricultura.

Segunda colocada nas pesquisas de intenções de voto no primeiro turno, a candidata do Partido Socialista Brasileiro (PSB), Marina Silva tem histórico de proximidade com as pautas ambientais. Em seu programa defende que os povos e comunidades tradicionais tenham seu território garantido como prevê a Constituição Federal. Seu programa é o mais completo nas questões que envolvem os povos indígenas, já que propõe mecanismos de gestão de conflitos para finalizar a demarcação de TIs, fica a dúvida se esses mecanismos não serão as mesmas mesas de diálogo do governo de Dilma que na prática paralisaram as demarcações. Marina falaem dar maior atenção à formação de profissionais de saúde indígena e adotar metas para melhorar os indicadores de saúde dos índios. Propõe ainda uma legislação específica para o reconhecimento e proteção de conhecimentos tradicionais, criar um programa de fomento à criação de cooperativas de artistas indígenas e quilombolas e fortalecer técnica e politicamente a Fundação Nacional do Índio (Funai).

Porém a candidata não deixa claro se seu governo estará disposto a um enfrentamento com o agronegócio para efetivar tais propostas, principalmente quanto às demarcações de terra. Sua propaganda fala em uma “nova política” de conciliação e unificação nacional sem levar em conta, por exemplo, a polarização conflituosa entre a luta pelos direitos dos povos indígenas e os interesses econômicos dos produtores rurais. Na reta final das eleições 2014, Marina tem se esforçado para ganhar o apoio do agronegócio. Se quando senadora, Marina via as mudanças no Código Florestal como um retrocesso, hoje se compromete com a implementação da lei. O fato é que a candidata não deixa claro quais interesses antagônicos pretende defender e, se por um lado seu programa defende demarcações, por outro se declara e se esforça para ser vista como aliada do agronegócio. Seus financiadores de campanha não negam essa aliança já que Marina recebeu investimentos da JBS e da Copersucar, maior exportadora do setor sucroenergético do Brasil.

Pelo Partido da Social Democracia Brasileira (PSDB), Aécio Neves defende que a regularização fundiária dos territórios seja acelerada. Ele promete agilizar os processos de demarcação para garantir a proteção física da população indígena e o apoio aos assentamentos com oferta de políticas públicas. Porém, seu discurso vai exatamente de encontro ao que propõem os produtores rurais para os processos de demarcação. Aécio pretende mudar as regras para demarcação de TIs, fala em ouvir os Estados através dos governos locais, além de incluir outros órgãos e não mais deixar o processo sob responsabilidade apenas da Funai. O candidato diz que seu parâmetro será aplicar as 19 condicionantes decididas pelo Supremo Tribunal Federal no caso da TI Raposa Serra do Sol (RR) em outras Terras, uma demonstração de seu desconhecimento quanto à especificidade das TIs espalhadas pelo Brasil que necessariamente devem passar por diferentes soluções, principalmente quanto à necessidade de correção de limites de algumas das terras já demarcadas. Aécio também recebeu grandes quantias da JBS, da Cutrale e da Copersucar para sua campanha.

Dois candidatos que fogem a regra são Luciana Genro do Partido Socialismo e Liberdade (PSOL) e Eduardo Jorge do Partido Verde (PV). Luciana Genro defende a demarcação imediata de terras indígenas realocando os agricultores não índios em lugares onde possam garantir sua sobrevivência. Ela considera que a paralisação nas demarcações é falta de vontade política em enfrentar os interesses do agronegócio. Na mesma linha, Eduardo Jorge fala em garantir demarcação de terras indígenas segundo critérios técnicos e não pelos interesses do agronegócio. Nos debates com outros candidatos Eduardo Jorge se mostrou informado e disposto a enfrentar os problemas pelos quais passam os povos indígenas, sua intenção é a de promover a real implementação dos direitos constitucionais e internacionais de tais povos incluindo os estabelecidos na Declaração das Nações Unidas da qual o Brasil é signatário.

O primeiro debate com a presença dos três presidenciáveis com mais intenções de voto, Dilma, Aécio e o até então candidato Eduardo Campos* e sua vice Marina Silva, foi promovido pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (CNA). Na ocasião a CNA entregou o documento O Que Esperamos do Próximo Presidente, posteriormente entregue aos demais candidatos. A organização, que representa os interesses dos produtores rurais, exige que outros órgãos, além da Funai sejam consultados durante os processos demarcatórios. Exige medidas para coibir o que consideram invasões de terra por índios e que garantam o cumprimento de sentenças judiciais de reintegração de posse. Pede ainda que o governo federal crie novos órgãos colegiados dos quais seriam delegados parte das obrigações hoje exclusivas da Funai. Apesar do discurso de Aécio ser o mais parecido com as exigências da CNA, diante de uma plateia com forte presença de empresários do agronegócio, os demais candidatos, Dilma e Campos, também se esforçavam para tranquilizar o setor. Ficou claro já no início da corrida presidencial que qualquer que seja o eleito, este fará de tudo para não contrariar os representantes do agronegócio.

Passados 26 anos desde a promulgação do texto da Constituição de 1988 que reconhece o direito dos povos indígenas às suas terras de ocupação tradicional, o Brasil tem cerca de 464 terras indígenas regularizadas, de um total de cerca de 691. Dentre as outras ainda não regularizadas, 119 estão em processo de identificação, 35 já foram identificadas pela Funai e 67 já foram declaradas como terra indígena pelo Ministério da Justiça, e aguardam a homologação da Presidência da República. A maioria das terras não regularizadas está em áreas de conflito ou interesses particulares e, só em 2013, o relatório Violência Contra os Povos Indígenas no Brasil (http://www.cimi.org.br/pub/Relatviolenciadado2013.pdf), divulgado pelo Conselho Indigenista Missionário (CIMI), contabilizou 53 assassinatos de indígenas pelo país. O cenário se completa com as tentativas de mudanças na legislação indigenista por parte do Congresso Nacional dominado pela Bancada Ruralista, frente parlamentar que representa os interesses do agronegócio na política brasileira. O relatório apresentado pelo CIMI constata ainda que de cada 100 indígenas que morrem no Brasil, 40 são crianças, revelando o estado caótico das políticas de saúde direcionadas a estes povos. Dos R$ 40 milhões destinados a melhorias na infraestrutura dos centros de atendimento, a Secretaria Especial de Saúde Indígena (SESAI) executou apenas R$ 3 milhões, cerca de 7,5% do orçamento de 2014. Nesse momento, o Governo Federal tenta aprovar a criação do Instituto Nacional de Saúde Indígena (INSI), o que significaria terceirizar suas responsabilidades e precarizar ainda mais o atendimento. Igualmente grave é a informação de que o Mato Grosso do Sul teve 73 casos de suicídio em 2013, uma média de um suicídio a cada cinco dias. Destes 72 eram do povo Guarani-Kaiowá, na maioria jovens entre 15 e 30 anos.

A história dos povos indígenas no Brasil é marcada pela luta cotidiana por seus direitos e pela resistência. Os próximos quatro anos certamente não serão diferentes. Seja quem for o próximo presidente eleito, podemos esperar que as conquistas destes povos só virão através da organização e mobilização de suas comunidades. Nos próximos quatro anos, assim como em toda a sua existência, o Centro de Trabalho Indigenista pretende estar junto aos povos indígenas visando contribuir para que estes assumam o controle efetivo de seus territórios e se tornem, cada vez mais, sujeitos de sua própria história.

*O candidato Eduardo Campos faleceu no dia 13 de agosto de 2014 e Marina Silva, até então sua vice, assumiu a candidatura pelo PSB

Sobre o Centro de Trabalho Indigenista – CTI

Centro de Trabalho Indigenista é uma associação sem fins lucrativos, constituída por profissionais com formação e experiência qualificadas e comprometidos com o futuro dos povos indígenas. Tem como marca de sua identidade a atuação direta em Terras Indígenas por meio de projetos elaborados a partir de demandas locais, visando contribuir para que os povos indígenas assumam o controle efetivo de seus territórios, esclarecendo-lhes sobre o papel do Estado na proteção e garantia de seus direitos constitucionais. Atualmente, o CTI atua em Terras Indígenas inseridas nos Biomas Amazônia, Cerrado e Mata Atlântica.

O CTI foi criado por jovens antropólogos no início de 1979, período que marca a transição do regime militar (1964-1986) para a democracia no Brasil. Setores da sociedade civil que atuavam junto aos movimentos sociais passaram a se organizar institucionalmente buscando intervir na política governamental vigente.

Desde o início o CTI atuou diretamente com os povos indígenas, realizando ações e projetos voltados aos seus interesses e necessidades, a partir de seus próprios princípios e conhecimentos, visando alternativas de futuro. Isto significava fazer frente aos projetos integracionistas propagados pelo Governo Militar e impostos nas Terras Indígenas (TIs) segundo a lógica da expansão capitalista, que implicavam em arrendamento de terras, agropecuária extensiva, extrativismo, enfim, ações que degradavam as florestas em nome do “desenvolvimento”.

Combater a política colonialista da Funai se tornou dever moral e um objetivo político – ao par ou acima do compromisso acadêmico. Envolver-se na prática com o futuro dos povos indígenas é diferente de vê-los apenas como objeto de estudo. O CTI considerava também que mobilizar a opinião pública não era suficiente para mudar a política indigenista. O trabalho junto aos índios é que fortaleceria o seu movimento por autonomia.

Com uma intervenção contínua, pontuada por atividades definidas pelo contexto político e social das comunidades indígenas, os focos do CTI são: reconhecimento
dos direitos territoriais dos povos indígenas, valorização das suas referências culturais e proteção ambiental das suas Terras.

Controle territorial e gestão ambiental

O Monitoramento da regularização fundiária envolve atividades relacionadas com pressão política visando acelerar a identificação e a delimitação das Terras Indígenas pela FUNAI e o acompanhamento da regularização fundiária. Apoia as manifestações indígenas pelo reconhecimento de seus territórios e de suas formas próprias de organização e investe na formação dos índios sobre direitos constitucionais, políticas públicas e legislações indigenista e ambiental.

Os projetos de alternativas econômicas sustentáveis consiste no apoio às atividades tradicionais e formas de manejo sustentável e no implemento de ações de recuperação e conservação ambiental considerando o zoneamento ambiental e a gestão indígena. Promove alternativas de desenvolvimento adequadas às necessidades internas das comunidades e à realidade local, incentivando o controle e o uso exclusivo dos recursos naturais. Investe no repasse de tecnologias simples e não predatórias para coleta, processamento e comercialização de produtos selecionados em acordo com critérios ambientais, sociais e econômicos.

Afirmação Étnica

Na Educação Escolar  o CTI contribui para a manutenção das práticas socioculturais das sociedades indígenas habilitando-as a elaborarem seus próprios modelos de futuro. Realiza projetos voltados à implantação de escolas, à formação de professores indígenas e à produção de materiais didáticos que atendem às realidades específicas. Busca ampliar as discussões e avaliações sobre as políticas públicas de educação escolares indígenas vigentes.

Quantos as Ações e Projetos Culturais, estimula uma série de ações dirigidas à afirmação e reprodução cultural dos povos indígenas. Promove intercâmbios variados que dinamizam a circulação de informações, notícias, conhecimentos e técnicas, e investe na realização de rituais e encontros. Realiza projetos para habilitar os índios ao registro audiovisual, à documentação e a difusão de suas expressões estéticas, de suas histórias e cosmologias, de modo a garantir às futuras gerações indígenas o uso e a valorização seu patrimônio cultural e intelectual.