Análise: PL 1610/96 e a Mineração à força

Por Daniel Calazans Pierri

Nova invasão das Terras Indígenas e a reativação do projeto integracionista do antigo Serviço de Proteção dos Índios

Tramita em regime de urgência no Congresso Nacional o Projeto de Lei 1610/96, de autoria do Senador Romero Jucá, que pretende “regulamentar” a mineração em terra indígenas. A bancada ruralista, depois de destruir o Código Florestal, se arma cada vez mais contra os direitos indígenas. Segundo ficou claro na manifestação dos deputados Padre Ton (PT-RO) e Édio Lopes (PMDB) à Comissão Nacional de Política Indigenista (Veja mais), a expectativa do Congresso e de parte do Governo é ver aprovado o Projeto o mais rápido possível, sem qualquer alteração significativa no texto.

Unem-se de maneira inequívoca nesse tema o interesse dos ruralistas, que possuem eles próprios uma série de empresas de mineração, e o programa desenvolvimentista do Governo Dilma que cada vez mais volta-se para uma primarização retrógrada da economia. Todos sabem que as hidrelétricas que Dilma impõe com seu trator político na Amazônia servirão sobretudo para fornecer energia aos projetos de mineração, para os quais o PL 1610/96 é uma peça chave. Além de Belo Monte (cujo atropelamento dos índios e dos condicionantes determinados pelo processo de licenciamento teve repercussão internacional), a bola da vez será o Complexo de Tapajós, cujo licenciamento já se inicia no mesmo ritmo que Belo Monte, numa clara falta de disposição do núcleo central do Governo no que tange ao respeito dos direitos indígenas e ambientais.

Mas voltando ao assunto, que na verdade é o mesmo, o PL 1610/10, além de desvirtuar a proposta do Estatuto dos Povos Indígenas por  separar a mineração dos outros temas de real interesse para os índios, também desvirtua completamente o conteúdo proposto para o capítulo de mineração  do EPI . Em primeiro lugar porque o projeto dos ruralistas não prevê o direito de que as comunidades indígenas tenham palavra final sobre as propostas de mineração no interior de suas próprias terras. Ou seja, consulta-se os índios, mas se eles não quiseram vai à força. Como foram e serão as hidrelétricas, mas com um impacto ainda mais devastador, porque o PL também não prevê qualquer porcentagem limite de exploração das Terras Indígenas. A rigor, se quiserem podem minerar todo subsolo de uma Terra Indígena, sem respeitar nem o veto do índios.

Se é verdade que há o interesse de algumas poucas comunidades indígenas em ter assegurada a “participação nos resultados da lavra” em suas terras, outros tantos povos são frontalmente contrários à exploração mineral em suas terras, inclusive por razões relacionadas à suas concepções cosmológicas, que deveriam ser respeitadas segundo o Artigo 231 da Constituição Federal, que garante aos índios o respeito à “sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições”, além dos “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

Para citar dois exemplos emblemáticos, lembremos que o povo Yanomami tem como principal bandeira a luta contra a mineração em suas terras. Na última assembléia da “Hutukara Associação Yanomami” foi firmado um pacto contra a mineração na Terra Yanomami manifestando no documento final (Veja aqui), que diz na primeira pessoa do plural:  “sabemos da cobiça das mineradoras pelo que Omama, o nosso criador, achou por bem esconder no fundo da terra.”

Como sabemos pelos trabalhos do antropólogo Bruce Albert1, que o demonstram através dos relatos de Davi Kopenawa, a mineração é para o povo Yanomami um elemento que pode resultar na “queda do céu”, uma vez que a retirada do minério pode enervar ao criador Omama. Vários povos dentro e fora da amazônia possuem concepções semelhantes, como por exemplo os Wajãpi2, do Amapá, que também lutaram contra o garimpo em suas terras por enxergarem na destruição ambiental provocada tanto pelo garimpo como pela mineração, uma destruição dos esteios que sustentam o mundo.

Apenas pelo fato do PL 1610/96 não prever o direito ao veto soberano dessas comunidades indígenas para as quais a mineração é inaceitável do ponto de vista de seus “usos, costumes e tradições” trata-se de uma medidia inconstitucional, que não poderia ser aprovada, e deve ser combatida judicialmente caso o seja.

Mas isso não é tudo. Como se sabe, a Constituição Federal de 1988 foi um marco para os direitos indígenas no sentido de romper com o modelo integracionista que vigorou até então, e instituir uma legislação fraternal, como disse o ex-Ministro Ayres Britto, que deveria ter como base a proteção e promoção dos direitos indígenas e não a tutela.

Ocorre que em inúmeros aspectos, o teor da proposta e o relatório preliminar do deputado relator da Comissão Especial da Camara, Sr. Édio Lopes, faz ressurgir das cinzas modelos de atuação do antigo Serviço de Proteção aos Índios (SPI), cuja função era explicitamente a de “integrar os índios à comunhão nacional”. Outro motivo pelo qual o projeto é francamente inconstitucional.

Em todo o período do SPI, e também durante a atuação da FUNAI do regime militar, os Postos Indígenas eram pensados unicamente a partir de sua “viabilidade econômica”, sem qualquer respeito aos “usos, costumes e tradições” dos índios. Em toda parte, como no interior do Paraná, do Rio Grande do Sul, São Paulo e Mato Grosso, para citar alguns exemplos, os índios eram obrigados a trabalhar como bóias-frias e toda a renda obtida nessas plantações (cujo regime de trabalho era muitas vezes análogo à escravidão, não dispensando do uso da tortura) passava diretamente ao orçamento do órgão indigenista, pagando a conta da suposta ‘proteção’, sem dispensar um pingo de dinheiro público.

E aí que está a questão. A outra fonte de renda do orçamento do SPI e sobretudo da FUNAI do regime miltar era a venda da madeira das ‘reservas indígenas’, que além de tudo resultou no no enriquecimento ilícito de muitos funcionários corruptos. Para quem não acredita, que veja no Youtube o filme de Sérgio Bianchi, Mato Eles?, que retrata a atuação da FUNAI na década de 1970 no antigo Posto Indígena de Mangueirinha, no interior do Paraná.

 

Em breve, a Comissão Nacional de Política Indigenista deve divulgar a Ata da sua 19ª Reunião Ordinária, ocorrida entre os últimos dias 3 e 9 de dezembro. A partir dela, será possível comparar em primeira mão as falas do deputado Édio Lopes com essas que o filme de Sérgio Bianchi testemunha. O que propõe Édio Lopes é que a mineração compulsória nas terras indígenas torne as comunidades indígenas “sustentáveis economicamente”. Afinal, “índio não trabalha” e por isso “há índios morrendo de fome em cima de riquezas minerais”, disse o deputado à bancada da CNPI. E a participação das lavras de que trata a Constituição Federal vai diretamente para as comunidades indígenas? Só um pouco, boa parte vai para a que a União possa fazer “projetos”
com os povos indígenas, já que muitos “não vão saber gastar”, como dizia o Deputado. O que prega o PL 1610/96, em outras palavras, é que o orçamento das ações do Estado para os povos indígenas seja custeado pela mineração, exatamente como o SPI fazia através da venda da madeira das terras indígenas.

Trata-se evidendemente de uma tentativa descarada de invasão das terras indígenas, desrespeitando aquelas comunidades que não querem nem mineração e nem participação nas lavras, e fazendo voltar pela janela o que a Constituição Federal havia expulsado pela porta da frente: o projeto integracionista do SPI.

O movimento indígena é unânime, porém, em enfatizar que mineração só se discute dentro do marco de um novo Estatuto dos Povos Indígenas, para que seja realmente promovido o que prega a Constituição Federal e respeitado o direito ao veto. E o que cabe à sociedade civil, é apoiá-los na resistênca a essa nova invasão.

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ALBERT, Bruce (2002). “O ouro canibal e a queda do céu: uma crítica xamânica da economia política da natureza”. Série Antropologia 174. Brasília: UNB.

GALLOIS, Dominique Tilkin (1989) “O Discurso Wajãpi sobre o Ouro: um Profetismo Moderno” in Revista de Antropologia. São Paulo. FFLCH/USP.