Foto: Peetsaa, CGIIRC/FUNAI, 2011

Nota do CTI sobre a intenção do governo de lotear a política pública de proteção de povos indígenas isolados e de recente contato para interesses de grupos evangélicos

O Centro de Trabalho Indigenista se soma às manifestações de diversas entidades e profissionais em repúdio à possível nomeação de ex-integrante da Missão Novas Tribos do Brasil para ocupar o cargo de Coordenador Geral de Índios Isolados e de Recente Contato da Fundação Nacional do Índio. Se concretizada, configurará a entrega de uma política de Estado extremamente sensível a interesses de grupos que constituem justamente uma das principais ameaças ao objetivo dessa política no presente: a proteção dos povos indígenas isolados e de recente contato e a integridade de seus territórios.

Na Amazônia brasileira vive o maior número de povos indígenas isolados e de recente contato conhecido no planeta.  Segundo dados da Funai, são 114 registros de povos ou grupos em isolamento, 28 deles confirmados, além de diversos povos considerados de recente contato. Essas populações têm em comum um alto grau de autonomia, de seletividade nas trocas que estabelecem com outros coletivos (expressa, por exemplo, na recusa em manter certos modos de contato) e também de vulnerabilidade, sobretudo territorial e epidemiológica.

No Brasil, o Estado é responsável pela proteção e pela preservação dos recursos ambientais necessários ao seu bem-estar e reprodução física e cultural. Ao longo de décadas desenvolveu e consolidou uma política e metodologias de trabalho próprias para isso. Essa trajetória foi marcada por contradições, conflitos, violações e pelo extermínio de diversos povos indígenas no país, em muitos casos pela própria ação do Estado, não raras vezes articulada a grupos missionários. A farta documentação histórica e a memória viva dos povos indígenas não deixam dúvidas sobre os efeitos desastrosos da ação proselitista missionária para esses povos no país, dentre eles a depopulação por epidemias, a desterritorialização e diversos impactos socioculturais.

Tendo como pano de fundo o processo de redemocratização do país e diversas transformações na sociedade brasileira, o final da década de 1980 marcou o rompimento da orientação tutelar e integracionista da política indigenista do Estado brasileiro que vigorou até então. A maior expressão dessa mudança foi a Constituição Federal de 1988, que reconheceu aos povos indígenas “sua organização política, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”.

As ações desenvolvidas pela Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados e as Frentes de Proteção Etnoambiental da Funai para a proteção dos povos indígenas isolados e recente contato passaram a ser pautadas pelo respeito à autonomia e autodeterminação desses povos – incluindo o respeito à sua opção pelo isolamento.  Todo o conjunto de práticas acumulado e empregado até então pelo Estado para contatar povos ou grupos em isolamento foi reorientado para o desencadeamento de ações visando à sua localização, monitoramento e proteção territorial, respeitando a sua manifesta recusa em estabelecer contatos permanentes. Esse conjunto de mudanças conferiu ao Brasil papel de destaque no desenvolvimento de políticas públicas de proteção e promoção de direitos de povos indígenas isolados, inspirando outros países na América do Sul e servindo de importante referência em processos de consulta que subsidiaram a elaboração de recomendações e diretrizes sobre o tema no plano internacional.

Nos últimos anos, contudo, a conjuntura tem sido extremamente desfavorável à efetivação dos direitos indígenas no país, colocando em cheque esses avanços. O aumento de pressões sobre as terras indígenas, o acirramento de conflitos envolvendo povos indígenas e o enfraquecimento da Funai e da política indigenista são alguns dos desafios enfrentados atualmente para a proteção de povos indígenas isolados e de recente contato. Sucessivos cortes orçamentários, mudanças na gestão do órgão indigenista e seu reduzido quadro de recursos humanos constituem riscos preocupantes para o futuro da política de proteção e promoção de direitos desses povos.

Nesse contexto, a Coordenação Geral de Índios Isolados e Recém Contatados da Funai requer técnicos qualificados e investimentos para o devido cumprimento de sua missão institucional. A intenção de nomear para cargo tão sensível um profissional que tem em seu currículo a ação evangelizadora junto a povos indígenas, e que guarda relação com uma entidade com o histórico de atuação da Missão Novas Tribos do Brasil, implicada em diversos contatos com consequências desastrosas para povos indígenas no país, se insere numa política mais ampla de nomeações para cargos estratégicos da Funai de pessoas sem qualquer compromisso com a defesa dos direitos indígenas. Além de não possuir requisitos mínimos necessários para a superação dos desafios postos à CGIIRC, sua nomeação constitui, por si só, uma grave ameaça à integridade desses povos e à política indigenista de Estado laica e pluricultural construída ao longo de décadas. Se consumada, significará o maior retrocesso na proteção de povos indígenas isolados e de recente contato no Brasil desde a redemocratização do país.

 

Brasília, 4 de fevereiro de 2020