Com coronavírus, os Guarani em São Paulo vivem isolamento em comunidade

Nas duas terras indígenas próximas à capital paulista, a covid-19 trouxe impactos que vão além dos números: frente às orientações de isolamento social, o modo de vida tradicional guarani vem sendo desafiado

Victoria Franco
09/06/2020 – 16h43 (atualizada em 10/06/2020 – 12h53)

O chão de terra batida virou uma constante no cenário da tekoa Pyau, a aldeia guarani mais populosa entre as seis da Terra Indígena Jaraguá, na zona noroeste de São Paulo. Antes, era apenas mais um elemento diluído entre a efervescência de pessoas e animais que orbitavam no local. Ao caminhar por ali, era quase impossível não ter que desviar de cães estendidos no solo, de gatos perseguindo galinhas e de crianças que cruzavam a cena correndo de uma casa para outra, brincando em áreas comuns ou participando de alguma atividade no Centro de Educação e Cultura Indígena (CECI), uma escola intercultural instalada pela prefeitura na aldeia em 2004.

Hoje, o CECI opera como centro de acolhida de indígenas suspeitos e infectados pelo coronavírus. É nele que uma equipe de saúde, formada por três médicos, doze profissionais de enfermagem, apoiadores de limpeza, alimentação e vigilância, se reveza em plantões de 12 horas para atender os Guarani Mbya com sintomas de covid-19. Ao descer da tekoa Pyau para a Ytu, a primeira aldeia do Jaraguá, outros 21 profissionais trabalham pela saúde indígena na Unidade Básica de Saúde (UBS) Kwaray Djekupe, em funcionamento desde 2006.

Até a última quinta (4), somente dois indígenas foram deslocados para o centro de isolamento e 53 já haviam recebido alta. Desde que a pandemia chegou ao Jaraguá, no fim de abril, foram realizados 353 testes, dos quais 77 foram positivos, 170 negativos e 121 estão pendentes. Por enquanto, somente um entre os quase 600 habitantes do território precisou de internação hospitalar. Ninguém faleceu.

“Estamos cientes de que em algum momento todos podem pegar, mas se for dessa forma que vem acontecendo aqui, um pouquinho por vez, a gente consegue cuidar, dar mais atenção e então recuperar esses casos. Estamos seguindo as medidas. A questão das máscaras é difícil…  Somos livres em nossa cultura e isso nos faz sentir um pouco sufocados… Mas vamos tentando, seguindo as orientações, sem apavorar as pessoas, tendo diálogo”, diz Thiago Henrique Karai Djekupe, ativista guarani e apoiador de saúde nas comunidades do Jaraguá.

Na outra terra indígena do povo Guarani Mbya em São Paulo, o coronavírus já provocou óbitos. A Tenondé Porã, no extremo sul da cidade, perdeu três de seus 1200 habitantes pela doença – uma criança de um ano no fim de março e dois idosos, na última quarta (3) e nesta segunda (8). Desde primeiro de maio, os dois CECIs do território também se tornaram centros de isolamento operando em sinergia com a UBS Vera Poty. Um grupo de auxiliares de enfermagem, uma enfermeira, um assistente social e outro administrativo, além de agentes de saúde guarani responsáveis por mobilizar as comunidades, tem atuado na coleta de 912 testes efetuados até o momento. Destes, 239 foram positivos, 526 negativos, 142 inconclusivos, três foram cancelados e outros dois estão em análise.

Em casos testados como positivo para covid-19, os indígenas entram em isolamento domiciliar ou nos centros de acolhimento sediados nos CECIs do território, onde recebem os cuidados e são encaminhados para unidades hospitalares, se necessário. | Fotos: Ana Paula Gonçalves/CTI

 

 

No último mês, chegaram dezenas de doações de máscaras e produtos de higiene nos dois territórios guarani de São Paulo, mas o uso fiel de cada um desses itens, e principalmente o imperativo do isolamento social, têm impactos culturais muito fortes para os Guarani. “A nossa cultura é diferente: é vivida, é sentida. Para os jurua kuery [não indígenas] é muito simples quando se fala em isolamento social porque eles já têm a vida ‘em caixinhas’. Mas dentro da comunidade há uma só família. É uma grande família que tem que lidar com essa situação. E a questão da coletividade, do cuidado com o outro, se tornou uma oposição diante dessas orientações de não contato”, relata Tiago Karai, uma das lideranças do território Tenondé Porã.

Desde que o coronavírus se tornou uma ameaça comum, os indígenas têm ouvido as equipes de saúde e espalhado entre si orientações para evitar a disseminação da doença pelas comunidades. O médico da UBS Vera Poty, Gabriel Mantovani, conta que as máscaras foram bastante adotadas em geral, mas reafirma os desafios do isolamento social em uma cultura que tem em sua centralidade o compartilhar: “Acho que em qualquer contexto é desafiador porque são muitos cuidados. Aqui ainda mais, pela questão do compartilhamento de objetos, que é muito intensa. Com esse modo de viver coletivo, é difícil orientar um isolamento domiciliar. E não é só isso: tem também os aspectos sociais e de acesso. Por exemplo, a higiene das mãos: em aldeias mais distantes da cidade não chega água. Isso dificulta orientações de um cuidado básico, que é lavar a mão antes de tocar no rosto ou comer.”

A principal medida seguida pelos Guarani é evitar sair da terra indígena, e conter também a circulação de não indígenas nas aldeias. Segundo o antropólogo do CTI Lucas Keese, essa é uma estratégia que faz parte do repertório guarani para se defender dos patógenos oriundos do mundo não indígena, em todos os sentidos que isso possa ter – sejam eles ameaças físicas ou simbólicas.

“Os Guarani vêm tentando produzir distâncias que vão protegê-los tanto das agressões do mundo não indígena, como dos processos que tentam homogeneizar as relações e diminuir as diferenças que eles estão sempre tentando marcar. Eles conseguem se distanciar enquanto povo, dá para pensar esse distanciamento em termos territoriais, em termos cosmológicos, mas eles não o pensam em termos individuais, em que pequenas famílias nucleares se isolam. Isso não faz sentido. O que permite que os Guarani produzam seu modo de vida é justamente o cuidado coletivo, o compartilhamento da vida”, explica Lucas.

Mesmo sendo inviável estancar a vivência comunitária, os Guarani têm receio de que essa pandemia traga danos irreparáveis à vida em suas comunidades, como outras situações que enfrentaram historicamente. Por isso, têm ultrapassado embates culturais em nome da manutenção da vida nas aldeias. “A gente fica triste, pensando que já vem há mais de 500 anos em contato com os não indígenas, passando muitas vezes por situações de eliminação. Infelizmente em 2020 estamos passando por tudo de novo”, diz Priscila Para Poty, do grupo de lideranças da Tenondé Porã. Ela conta que sente falta dos almoços comunitários que aconteciam nas aldeias, a primeira prática cultural suspensa em função do coronavírus: “A gente vem tentando evitar ao máximo aglomerações nas comunidades, tanto que a gente parou de fazer almoço coletivo para as crianças, para os mais velhos, nossos xeramoĩ [anciãos] e xejaryi [anciãs]. Mas é um pouquinho complicado… A gente é livre. E agora não pode mais compartilhar petgua [cachimbo], nosso ka’a [erva-mate], que são sempre oferecidos quando você visita nossos velhinhos”.

A avaliação da equipe de saúde da Tenondé Porã é de que, especialmente nas aldeias mais populosas do território, a disseminação do coronavírus está se estabilizando . “As contaminações começaram a acontecer em abril e tiveram seu pico em maio. Agora, no mês de junho, vai continuar havendo casos, mas provavelmente com maior intervalo entra as infecções. O que me preocupa mais nesse momento são as aldeias mais distantes. Lá, os casos começaram a aparecer agora e a transmissão vai ser rápida, porque nelas vivem poucas pessoas”, pontua o médico Gabriel Mantovani .

Nas áreas mais distantes do centro urbano, vivem geralmente poucas famílias, muitas vezes com dificuldades de acesso à direitos básicos e à locomoção. Na tekoa Yrexakã, uma das nove aldeias que integram a Terra Indígena Tenondé Porã, são quase 20 km, com muitos trechos inacessíveis via transporte público, até a UBS que atende as comunidades. Foi lá que faleceu a segunda vítima de covid-19 do território, na semana passada. É para esses pontos da terra indígena que a equipe de saúde está voltando a atenção no momento.

O Jaraguá, por sua vez, é um território menor, extremamente pressionado pela cidade, em que restaram apenas 532 hectares de terra aos Guarani. Nele, a aldeia mais distante, chamada Ita Endy, está a 10 km percorridos quase inteiramente de ônibus da UBS da comunidade, e a preocupação com falta de acesso já é menos intensa. Mas as mudanças no modo de vida guarani são compartilhadas, relata Marcio Boggarim, liderança guarani na Terra Indígena Jaraguá: “Nesse novo tempo, a gente tem que aprender, por causa do vírus, e por um período, uma coisa muito difícil de entender na nossa cultura:  ser individualista como o jurua [não indígena]”.

 

A tekoa Pyau, na Terra Indígena Jaraguá, é a aldeia mais populosa e também com maior presença de animais. Depois da pandemia de covid-19, anda vazia. | Foto: Richard Wera Mirim
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