Mulheres indígenas do Cerrado realizam encontro histórico e lançam carta política pelo futuro do bioma

por | set 29, 2025 | Notícias

Mais de vinte povos diferentes estiveram representados em Brasília para fortalecer o protagonismo feminino e defender o Cerrado.

Por Tiago Kirixi Munduruku/CTI

A força das mulheres indígenas que vivem no Cerrado ecoou no coração de Brasília entre os dias 9 e 13 de setembro de 2025. Mais de 120 mulheres de diferentes povos se reuniram na capital federal para o I Encontro de Mulheres Indígenas do Cerrado, realizado simultaneamente com o XI Encontro e Feira dos Povos do Cerrado. A atividade, organizada pela Mobilização dos Povos Indígenas do Cerrado (MOPIC) por meio de seu Comitê de Mulheres, é considerada um marco histórico para a luta indígena em defesa do segundo maior bioma do Brasil e resultou na Carta Final das Mulheres Indígenas do Cerrado – Por território, água e vida.

Um marco para a articulação feminina no bioma

Planejado e preparado ao longo de quase dois anos, o encontro teve como objetivo fortalecer a articulação política, social e cultural das mulheres indígenas do Cerrado, em um momento marcado pelo agravamento da crise hídrica, pelo avanço do agronegócio, pela contaminação dos rios e pelos efeitos das mudanças climáticas. As discussões reuniram lideranças de povos como Paresi, Bakairi, Xavante, Boe Bororo, Yudjá, Karajá, Guarani Kaiowá, Terena, Kinikinau, Xakriabá, Kaxixó, Tuxá, Timbira, Guajajara, Javaé, Xerente e povos do Distrito Federal, entre outros.

Logo no primeiro dia, a deputada federal Célia Xakriabá (PSOL-MG) destacou a importância do protagonismo feminino na defesa do Cerrado e na preservação dos territórios tradicionais. “Fortalecer as mulheres é fortalecer a vida do bioma”, afirmou.

No segundo dia do encontro, em 10 de setembro, a programação foi marcada pela troca de experiências e pelo fortalecimento do protagonismo feminino. A manhã começou com cantos tradicionais e trabalhos em grupos divididos por estado, em que as participantes apresentaram as principais demandas e experiências de seus povos. Essa diversidade evidenciou a riqueza cultural e a pluralidade de modos de vida no Cerrado.

Na plenária da tarde do mesmo dia, as mulheres se organizaram em seis eixos temáticos: saúde, educação, violência contra a mulher indígena, território, cultura, economia e sustentabilidade. Em cada grupo, foram analisados os desafios de seus territórios e construídas propostas coletivas. A metodologia foi pensada para que as vozes femininas guiassem os debates, fortalecendo redes de apoio e estratégias conjuntas.

Diagnóstico atualizado: uma ferramenta política

As atividades do terceiro dia foram concentradas no XI Encontro e Feira dos Povos do Cerrado, onde foi apresentada a atualização do Diagnóstico dos Povos e Territórios Indígenas do Cerrado, conduzida pela MOPIC e pelo Centro de Trabalho Indigenista (CTI). O estudo, iniciado em 2008, agora incorpora as visões das próprias lideranças, especialmente das mulheres.

O diagnóstico revela pressões crescentes sobre o bioma, como agronegócio, mineração, desmatamento e uso de agrotóxicos, e evidencia o papel estratégico dos territórios indígenas como barreiras de proteção da biodiversidade e das águas do Cerrado. A expectativa é que, ao ser disponibilizado em uma plataforma virtual da MOPIC, o material fortaleça a incidência política dos povos e subsidie ações de conservação.

Carta final: reivindicações e horizontes

O ponto alto do encontro foi a aprovação da Carta Final das Mulheres Indígenas do Cerrado. No documento, as participantes reafirmam o papel das mulheres como guardiãs do Cerrado, responsáveis por sementes, nascentes, roças, quintais e pelo manejo tradicional do fogo. A carta também denuncia a violência contra mulheres indígenas, que fragiliza territórios e rompe redes de cuidado.

Entre as reivindicações, as mulheres defenderam a demarcação imediata e a proteção efetiva de todas as Terras Indígenas do Cerrado, bem como o fortalecimento da saúde indígena com recorte de gênero, valorizando parteiras, pajés, benzedeiras e medicina tradicional. 

Destacaram também a necessidade de consolidar uma educação escolar indígena diferenciada, com autonomia pedagógica, estabilidade de professores e garantia das línguas e currículos próprios. Outro ponto central foi o enfrentamento à violência contra mulheres indígenas, com protocolos comunitários, acesso à justiça e políticas de prevenção construídas com participação das lideranças.

O documento enfatizou ainda a importância de fortalecer as economias indígenas e a sustentabilidade, apoiando roças, quintais, sementes tradicionais, artesanatos e outras iniciativas produtivas conduzidas por mulheres. Também foi exigido o reconhecimento e a implementação de Planos de Gestão Territorial e Ambiental (PGTAs), protocolos de consulta e brigadas indígenas com recursos e participação plena das mulheres, além da criação de políticas específicas para aldeias urbanas. 

As participantes defenderam políticas de adaptação climática no Cerrado com protagonismo indígena, prevendo planos comunitários por território, proteção de nascentes, recuperação de veredas e acesso direto a financiamento climático para iniciativas lideradas por mulheres. Por fim, pediram a criação de um fundo específico para a MOPIC, como forma de garantir autonomia e sustentabilidade às ações.

“Nós, mulheres, sentimos os impactos do desmatamento do Cerrado em nossos territórios… o respirar tá difícil, o plantio tá difícil, as nascentes correm o risco de secar… então esse primeiro encontro vem para nos fortalecer e para fortalecer o nosso bioma, para que ele passe a ser mais pautado, mais visto, mais preservado”, alertou Diolina Krikati, integrante do Comitê de Mulheres.

Para Daniele Terena, também do Comitê, o encontro fortalece a troca de experiências. “Esse encontro fortalece as ações que já vêm sendo desenvolvidas de maneira orgânica por nós em nossos territórios. E quando a gente tem essa troca de experiência, a gente escuta uma a outra, a gente sai mais fortalecida e cientes de que o futuro do Cerrado depende de nós, depende de políticas públicas… e a partir daqui a gente se reúne em uma grande rede que tende a dar muito certo”.

Já Kunha Apyka Vera Ju, representante do povo Guarani Kaiowá, destacou que a mobilização tem efeito direto sobre a saúde e a vida das comunidades. “Esse encontro deu uma força para a gente, deu essa união, desse coletivo de mulheres que está enfrentando a seca, o agrotóxico, as mudanças climáticas […] e o Cerrado representa a nossa saúde vital, é a raiz das nossas vidas. Então é uma força que a gente está levantando com o apoio da MOPIC”.

Um abraço que sela a união

O encontro foi encerrado com um ato simbólico: todas as mulheres presentes se abraçaram em um gesto coletivo de resistência e esperança. O abraço representou a união de povos, gerações e territórios em defesa do Cerrado, considerado o coração das águas do Brasil. A Carta Final resume o espírito do encontro: “Onde uma mulher indígena está, a água resiste, a mata respira e o futuro se levanta.”  

O I Encontro de Mulheres Indígenas do Cerrado foi realizado por meio de distintos projetos e contou com o apoio do Fundo de Parceria Para Ecossistemas Críticos (CEPF) e sua Equipe de Implementação Regional, o Instituto Internacional de Educação do Brasil (IEB); do Instituto Clima e Sociedade (ICS) e do Fundo Brasileiro para a Biodiversidade (Funbio), por meio do Programa COPAÍBAS.