Na Aldeia Limão Verde, Povo Terena reforça luta histórica e projeta novos rumos para território, saúde e educação

por | ago 14, 2025 | Notícias

Lideranças, mulheres, jovens e anciãos se reuniram em Aquidauana (MS) para reafirmar a defesa do território e traçar novos caminhos para o povo Terena.

Por Tiago Kirixi Munduruku/CTI

Entre 16 e 19 de julho, a Aldeia Limão Verde, na Terra Indígena Limão Verde, município de Aquidauana (MS), tornou-se o epicentro da mobilização política e cultural do povo Terena. Durante quatro dias, a comunidade recebeu caciques, anciãos, jovens, mulheres, professores, estudantes, parlamentares e apoiadores para a 18ª Grande Assembleia do Povo Terena, um encontro que reafirmou a luta por território, dignidade e vida, marcada pela presença intergeracional e pela força coletiva.

Logo na entrada da aldeia, era possível sentir o clima de encontro. Famílias chegavam de diferentes territórios, trazendo malas, artesanatos, instrumentos e alimentos preparados nas casas. O pátio central foi tomado por uma tenda enorme, cadeiras, painéis coloridos e a circulação constante de crianças, idosos e lideranças. Ao fundo, as arvores ofereciam sombra para as conversas informais, enquanto o som dos cantos tradicionais se misturava ao burburinho das discussões.  

A abertura da Assembleia foi marcada por um momento de forte simbolismo cultural. No centro da tenda montada, guerreiros Terena formaram duas fileiras e deram início à Dança da Ema, Kohixoti Kipaé, guiados pelo som grave dos tambores e pelo sopro firme das flautas de taboca. As taquaras, longas varas de bambu, batiam ritmadas, criando um som seco que se misturava ao compasso das passadas firmes. O movimento dos guerreiros lembrava o deslocamento de aves pelo campo, alternando avanços e recuos, como se cercassem um inimigo invisível.

A plateia se manteve atenta, acompanhando cada batida. Crianças pequenas observavam com curiosidade, enquanto os mais velhos trocavam olhares que pareciam reconhecer, naquelas coreografias, histórias e memórias transmitidas há gerações. Logo depois, as mulheres entraram em roda para a dança Siputrina, com passos leves e movimentos circulares, embalados pelo som contínuo das flautas, celebrando a união e a coletividade que marcariam todo o encontro.

Conjuntura política: direito originário não se negocia

A Assembleia abriu com um diagnóstico contundente da conjuntura nacional: a aprovação da Lei 14.701/2023, apelidada de “PL da Devastação” pelas lideranças, foi apontada como um ataque direto à Constituição e aos direitos originários. A lei facilita a exploração econômica das terras indígenas, impõe critérios como a tese do Marco Temporal e fragiliza os processos de demarcação.

O posicionamento foi claro: não há espaço para acordos que substituam direitos por indenizações ou que criminalizem as retomadas. A exigência é pela imediata declaração de inconstitucionalidade da lei e a retomada dos processos no Supremo Tribunal Federal.

Território: demarcações paradas e a legitimidade da autodemarcação

As falas sobre território expuseram um cenário de estagnação. Processos já em fases avançadas, com marcos físicos prontos para instalação, estão parados devido à Lei 14.701/2023, que estabelece o Marco Temporal para a demarcação de terras indígenas e decisões judiciais. Lideranças de diferentes terras, como Taunay-Ipegue e Cachoeirinha, assumiram o compromisso de pressionar Funai e STF para destravar as demarcações.

A autodemarcação e as retomadas foram reafirmadas como instrumentos legítimos e necessários para garantir a integridade territorial.

Saúde indígena: demandas urgentes e saberes tradicionais

O tema da saúde revelou um quadro delicado. A rotatividade de coordenadores e a demora nos atendimentos de média e alta complexidade comprometem o cuidado contínuo. Há carência de transporte, medicamentos e profissionais qualificados.

Entre as decisões, estão a cobrança por investimentos emergenciais, a contratação de equipes de forma transparente e sem interferência política e a valorização das práticas de cura tradicionais, com parteiras, rezadores e anciãos integrados de forma remunerada às equipes de saúde. “R$ 30 bilhões ao agronegócio, migalhas à saúde indígena — isso é projeto de morte”, registrou a plenária.

Educação: da língua Terena à universidade indígena

As discussões sobre educação apontaram para a necessidade de fortalecer o ensino bilíngue e intercultural, valorizar a formação de professores e inserir no currículo escolar temas debatidos na Assembleia, para que crianças e jovens compreendam a realidade nacional e fortaleçam sua identidade.

Foi defendida a criação de uma Universidade Indígena no Mato Grosso do Sul, estado com a terceira maior população indígena do país, além da ampliação de bolsas e apoio à pesquisa feita por indígenas.

Mulheres e juventude: presença ativa na política e na cultura

O Conselho de Mulheres Terena definiu novas representantes para a Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) e confirmou participação em eventos nacionais e regionais.

A juventude foi celebrada como guardiã da memória ancestral e protagonista do presente. Entre as pautas, fortalecer a comunicação própria, ampliar espaços de formação política e cultural e preservar a espiritualidade sem interferência de fanatismos. A presença de jovens do povo Kadiweu foi vista como símbolo de união e diálogo entre povos.

Soberania alimentar e clima

Frente às emergências climáticas, as lideranças defenderam o resgate de saberes agrícolas ancestrais, a preservação das sementes crioulas e o fortalecimento da agroecologia em escolas e territórios. Cobrou-se a ampliação do Programa de Aquisição de Alimentos Indígena e a transformação da PNGATI em lei, com valorização dos agentes ambientais indígenas.

Mobilização política e rumo a 2026

A Assembleia reforçou a necessidade de uma bancada indígena forte, com candidaturas articuladas a partir das comunidades e comprometidas com as pautas coletivas. A COP 30, em Belém, foi definida como palco estratégico para denunciar a destruição do Pantanal e a contaminação das águas causada pelo avanço do agronegócio.

Encerramento: compromisso ao amanhecer

Na manhã do último dia, o pátio da aldeia estava mais silencioso, mas carregado de significado. O frio suave do inverno pantaneiro se dissipava com o sol subindo no horizonte. Caciques, mulheres, jovens e anciãos se reuniram em roda para as palavras finais, enquanto famílias organizavam seus pertences para a viagem de volta.

O documento final foi lido como manifesto político do Povo Terena e será encaminhado a órgãos públicos e divulgado amplamente. Antes de se dispersar, a plenária deixou registrada a mensagem que atravessa gerações:

“O Estado pode cortar recursos, omitir políticas e nos negar direitos, mas não vai calar nossa voz. Seguiremos lutando, ensinando, curando, cultivando e existindo. Porque a nossa vida vale mais que o lucro do agronegócio”.