Repúdio à anulação da Portaria Declaratória da Terra Indígena Jaraguá

Nesta segunda-feira (21) o Ministro da Justiça, Torquato Jardim, revogou a Portaria Declaratória n°581, de 2015, que reconhecia 532 hectares de ocupação tradicional guarani na região metropolitana de São Paulo.

Demarcada inicialmente em 1987, a Terra Indígena Jaraguá era a menor terra indígena do país. Com apenas 1,7 hectares de área protegida, quase mil indígenas, mais da metade deles crianças. Um verdadeiro confinamento.

Em solidariedade às manifestações da Comissão Guarani Yvyrupa – CGY, o CTI divulga a presente a nota analisando tecnicamente a decisão inconstitucional do Ministro da Justiça.

Erros à conta do Ministro
Espanta, de pronto, que a portaria afirme que a primeira demarcação destinou 3 hectares para os índios. São 1,3 hectares de diferença – se para o Ministro isso é desprezível, para os Guarani quase dobraria a área demarcada em que resistem há mais de vinte anos.

Os 1,7 hectare reconhecidos não contemplavam, já em 1987, sequer as áreas habitadas permanentemente pelos Guarani. Sua demarcação, anterior à Constituição de 1988, não contou com um estudo antropológico, e não levou em consideração as áreas necessárias à moradia, ao cultivo, à caça e pesca, à coleta, e sua reprodução física e cultural enquanto povo indígena.

A Portaria Declaratória n° 581, assinada em 29 de maio de 2015, serviu para validar o processo de demarcação iniciado pela Fundação Nacional do Índio em 2002, que pretendia adequar a terra aos parâmetros estabelecidos pela Constituição Federal de 1988. Dois anos e um golpe depois, ao revogar a portaria o Ministro da Justiça despreza os mais de dez anos de estudos técnicos e revela uma segunda vez o seu despreparo ao lidar com a questão: o ato administrativo de revogação afirma que a terra indígena foi declarada com 512 hectares, quando bastaria uma consulta ao diário oficial da união para saber que a terra foi declarada, em verdade, com 532 hectares. Entre a declaração e a “des-declaração”, o Ministro fez perder 20 hectares. Sequer foi consultado o procedimento administrativo original.

Dos considerandos na portaria
Quanto aos considerandos que a justificam, a portaria que revoga a declaração da TI Jaraguá apresenta quatro argumentos:

  • o desacordo com a Lei nº 9.784, de 29 de janeiro de 1999, que dispôs o prazo de cinco anos para a revisão dos atos administrativos do poder público;
  • a sobreposição com o Parque Estadual do Jaraguá, e a não participação do Estado de São Paulo no procedimento administrativo, garantido pelo Decreto n° 1775/96;
  • a existência de decisões judiciais do Superior Tribunal de Justiça e do Supremo Tribunal Federal, que teriam suspendido os efeitos da portaria; e
  • a obediência aos princípio da legalidade estrita, da razoabilidade e da proporcionalidade.

Basta consultar os documentos que constam do procedimento administrativo para confirmar que nenhum desses argumentos se sustenta.

No que concerne aos prazos da Lei nº 9.784/99, a questão é de simples aritmética. A data inicial para contagem do prazo previsto no artigo 54 da Lei 9784/99, citado pelo ministro, é a data de início da vigência da própria Lei, ou seja, 1 de fevereiro de 1999. A Portaria nº 735, da Presidência da FUNAI, que nomeou o Grupo Técnico para a identificação e delimitação da área – ato inaugural do procedimento administrativo do processo demarcação da TI Jaraguá, conforme regula o Decreto nº 1775/96 – foi baixada em 5 de agosto de 2002, e publicada no Diário Oficial da União em 7 de agosto daquele mesmo ano, portanto ainda dentro do prazo de cinco anos contados a partir de 1 de fevereiro de 1999.

Além disso, o argumento não se sustenta frente ao texto da Constituição Federal de 1988 que, em seu artigo 231, trata dos direitos dos povos indígenas às terras que tradicionalmente ocupam e define tais direitos como imprescritíveis. É dizer, uma vez que os índios ocupam suas terras desde antes do advento da ordem jurídica, seus direitos não podem ser destituídos pelo tempo. O mínimo que se poderia esperar de um Ministro é que conhecesse as disposições do texto constitucional.

O argumento de que o processo de demarcação não contou com a participação do estado de São Paulo também não se sustentajá que o trâmite da demarcação na FUNAI traz notificações diretas ao Governador do Estado de São Paulo solicitando sua manifestação e a vários órgãos estaduais, inclusive a Secretaria do Meio Ambiente e a Fundação para a Conservação e a Produção Florestal de São Paulo.

Aberto o prazo de contestação administrativa da demarcação, o Governo do Estado de São Paulo não demonstrou qualquer oposição à demarcação da terra. Se há alguma prescrição de direito, é a que corre em desfavor do Estado de São Paulo por não ter se manifestado no período de contestação.

A Portaria revogatória do Ministério da Justiça faz referência a duas decisões do Superior Tribunal de Justiça que suspendem parcialmente os efeitos da portaria que declarou a TI Jaraguá como terra de ocupação tradicional do povo guarani, e uma decisão do STF em Suspensão de Segurança que teria reafirmado a suspensão. Ocorre que os três casos tratam apenas de decisões em sede de liminar, proferidas em um momento em que a comunidade indígena não participava do processo. Parada nos tribunais, a contestação da comunidade aguarda julgamento desde setembro de 2016.

Ademais, ao escolher suas fundamentações, o Ministro da Justiça deliberadamente ignora a liminar concedida em favor da comunidade guarani em um quarto processo: no Mandado de Segurança no 33821, em que o STF recusa o pedido de um particular que pretendia anular os efeitos da portaria declaratória sobre parte da Terra Indígena Jaraguá. Nessa decisão, o Ministro Dias Toffoli argumenta que todos indícios pendem exatamente para demonstrar a tradicionalidade da ocupação guarani no local. Neste caso, houve julgamento definitivo.

“Legalidade estrita”, como menciona a portaria, é de fato um dos princípios que rege o procedimento administrativo. Valeria lembrar, assim, que ao tratar das competências no procedimento de demarcação de terras indígenas, o Decreto n° 1775/96 não cede ao Ministro da Justiça o poder de revogar portarias declaratórias. Em se tratando de legalidade, a lei pesa contra o ato de Torquato Jardim.

Mas ainda no campo dos princípios, especificamente, há uma regra maior de direito que precisa ser tomada em consideração: o princípio do não-retrocesso nos direitos fundamentais. Nada justifica que, depois de mais de vinte anos à sombra de reintegrações de posse para que o procedimento demarcatório resultasse em uma portaria declaratória, o governo deliberadamente, sem consulta, e sem justificativa razoável, resolva em gabinete revogar um ato de Estado que finalmente fez reconhecer os direitos indígenas, baseado em estudos técnicos.

O Jaraguá é Guarani!
Com muito esforço de toda a comunidade, os guarani do Jaraguá têm buscado soluções para os graves problemas que enfrentam, como a falta de saneamento básico, a falta de assistência adequada à saúde, a falta de políticas sociais de maneira geral, que já levaram a morte de crianças e adultos. A revogação da Portaria n° 581, que nega à comunidade o acesso aos 532 hectares de ocupação tradicional do povo Guarani é um retrocesso que coloca em jogo todo o esforço da comunidade na busca da efetivação de seus direitos.

A assessoria jurídica da Comissão Guarani Yvyrupa tomará as medidas judiciais cabíveis contra a Portaria n° 683 de Torquato Jardim.

O Centro de Trabalho Indigenista manifesta sua solidariedade com a comunidade guarani da Terra Indígena Jaraguá, e apoiará suas decisões enquanto povo no enfrentamento dessa injustiça.

Quatro ações judiciais de despejo pesam sobre as aldeias do Jaraguá. Esperamos que a decisão do Ministro não resulte no pior.