Mulheres indígenas marcham em Brasília pela defesa dos corpos-territórios e pela cura da terra

por | ago 19, 2025 | Notícias

Com mais de cinco mil participantes de cerca de 100 povos, a 1ª Conferência Nacional e a 4ª Marcha das Mulheres Indígenas levaram à capital federal um grito coletivo por demarcação de terras, justiça climática e políticas públicas com protagonismo feminino.

Por Tiago Kirixi Munduruku/CTI

Brasília viveu, entre 2 e 8 de agosto, uma semana marcada pela força, cor e determinação das mulheres indígenas. Vindas de todas as regiões do país, elas transformaram a cidade em um espaço de mobilização e articulação política durante a 1ª Conferência Nacional das Mulheres Indígenas e a 4ª Marcha das Mulheres Indígenas. Com o lema “Nosso corpo, nosso território: somos as guardiãs do planeta pela cura da terra”, o encontro uniu espiritualidade, memória ancestral e incidência política em um momento decisivo para os direitos dos povos originários.

Um encontro de vozes e histórias

A conferência, realizada de 4 a 6 de agosto, foi resultado de meses de trabalho coordenado pela Articulação Nacional das Mulheres Indígenas Guerreiras da Ancestralidade (ANMIGA) junto ao Ministério dos Povos Indígenas e ao Ministério das Mulheres. Antes de chegar a Brasília, sete etapas regionais de escuta percorreram os seis biomas brasileiros, reunindo propostas e relatos das bases. Cada etapa recebeu o nome de uma árvore símbolo de seu território, castanheira, sapopema, araucária, jurema, mangabeira e sumaúma, reforçando a conexão com a terra e a diversidade dos povos.

Segundo Jozileia Kaingang, diretora executiva da ANMIGA, a conferência foi pensada para inverter a lógica de decisões impostas de cima para baixo: “Nós queremos construir as políticas públicas que nos dizem respeito de forma coletiva, assim como fazemos nos nossos territórios”.

A construção da carta e o dia da marcha

Os debates nacionais resultaram na Carta pela Vida e pelos Corpos-Territórios, documento com 49 propostas prioritárias. O texto reafirma a demarcação e proteção das terras indígenas, a revogação do marco temporal, a implementação da Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental (PNGATI), a criação de políticas de enfrentamento à violência de gênero, a valorização das medicinas tradicionais, a ampliação do acesso à educação com saberes ancestrais e ações urgentes contra a crise climática.

No dia 7 de agosto, a IV Marcha levou essa carta para as ruas. A concentração começou cedo, no Complexo Cultural Funarte, de onde milhares de mulheres seguiram cantando e entoando palavras de ordem até a Praça dos Três Poderes. Lá, o documento foi entregue ao Congresso Nacional como um símbolo da resistência e da exigência de mudanças estruturais.

O ato ocorreu num momento político sensível: apenas um dia depois, venceria o prazo para o presidente Luiz Inácio Lula da Silva sancionar ou vetar o PL 2.159/21, apelidado de “PL da Devastação” por flexibilizar o licenciamento ambiental e fragilizar a proteção de territórios e ecossistemas. “Este é um plano de futuro, de cura da terra e dos nossos corpos, que são territórios sagrados”, afirmou Jozileia diante da multidão.

Lutas que atravessam territórios e corpos

As pautas debatidas não ficaram restritas a listas ou resoluções; elas se entrelaçaram em histórias de vida, denúncias e esperanças. O direito e a gestão territorial foram apresentados como base para todas as outras reivindicações: sem terra protegida, não há como garantir saúde, educação ou segurança alimentar. A crise climática apareceu como ameaça concreta, das secas e queimadas ao envenenamento da água por agrotóxicos, e as mulheres defenderam soluções que unem ciência e saberes tradicionais, como reflorestamento, agroecologia e acesso universal à água potável.

No campo das políticas públicas e enfrentamento à violência de gênero, destacaram-se propostas como a criação de Casas da Mulher Indígena em todos os biomas, centros de referência em municípios com presença indígena, protocolos contra violência obstétrica e políticas de autonomia econômica. Na saúde, o foco foi garantir atendimento especializado para mulheres, reconhecer parteiras e pajés como profissionais e incluir medicinas tradicionais no sistema oficial. Já na educação, as lideranças defenderam cotas específicas para mulheres indígenas, políticas de permanência para mães e a inclusão dos saberes das mulheres indígenas nos currículos escolares.

Uma rede que cresce e se fortalece

A Marcha das Mulheres Indígenas nasceu em 2019 e, desde então, acontece a cada dois anos, organizada por uma rede de 420 mobilizadoras que atuam nos seis biomas brasileiros. Mais do que um evento, tornou-se um processo contínuo de formação política, troca de saberes e fortalecimento das lideranças femininas.

A quarta edição reafirmou que essa rede está mais articulada e combativa, conectando demandas locais a um movimento nacional e internacional por justiça socioambiental. “Nós não estamos pedindo favores, estamos exigindo o cumprimento dos nossos direitos e o respeito aos nossos corpos-territórios”, resumiu uma liderança durante o ato final.

Um compromisso que não se encerra em Brasília

Ao final da semana, a sensação entre as participantes era de que a marcha não termina quando os passos cessam. A Carta pela Vida e pelos Corpos-Territórios é, ao mesmo tempo, um registro do que foi construído e uma convocação para as próximas lutas. “Nosso corpo é território. Nosso território é sagrado. Seguiremos organizadas, mobilizadas e em luta por justiça, bem-viver e pela continuidade da vida no planeta”, conclui o documento.

Brasília foi apenas o ponto de encontro. A marcha continua, espalhada por aldeias, comunidades e cidades, onde as mulheres indígenas seguem tecendo, mobilizadas em prol dos seus direitos e territórios.