O Centro de Trabalho Indigenista (CTI), organização da sociedade civil com mais de quatro décadas de atuação em defesa dos direitos dos povos indígenas no Brasil, vem manifestar seu profundo repúdio à aprovação, pelo Senado Federal, do Projeto de Decreto Legislativo 717/2024 que tenta sustar as homologações da Terra Indígena Morro dos Cavalos e da Terra Indígena Toldo Imbu, ambas em Santa Catarina, e revoga o artigo 2º do Decreto 1.775/1996, que rege os procedimentos de demarcação das terras tradicionalmente ocupadas pelos povos indígenas.
A Terra Indígena Toldo Imbu, localizada em Abelardo Luz (SC), tem 1.960 hectares tradicionalmente ocupados pelo povo Kaingang. A Terra Indígena Morro dos Cavalos, localizada no município de Palhoça (SC), possui 1.988 hectares tradicionalmente ocupados pelo povo Guarani Mbya.
No caso da TI Morro dos Cavalos, desde os anos 1990, essa terra tem sido objeto de intensa luta política e jurídica por reconhecimento, sendo também alvo recorrente de ataques institucionais, perseguições e campanhas de desinformação. Trata-se de um dos casos mais emblemáticos de resistência indígena diante da tentativa de apagamento histórico e da negação sistemática dos direitos originários.
Documentos oficiais de 1974 e 1986 já registravam a presença Guarani na região, evidenciando a ocupação tradicional do território muito antes de qualquer processo de demarcação ou construção da rodovia BR 101, afastando qualquer tentativa de aplicação da inconstitucional tese do marco temporal. Essa ocupação também é fartamente comprovada pelos próprios Guarani que descrevem os usos do seu território de forma detalhada, confirmada por depoimentos de antigos moradores, reunidos no Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação (RCID), peça técnica que fundamenta o procedimento de demarcação da Terra Indígena Morro dos Cavalos.
A Portaria Declaratória nº 771, publicada pelo Ministério da Justiça em 2008, reconhece 1.988 hectares como território tradicionalmente ocupado pelo povo Guarani Mbya. No entanto, desde então, o processo de homologação encontra-se travado por judicializações e ataques políticos contínuos — especialmente por parte da bancada ruralista. Quando, enfim, o Estado brasileiro cumpre seu dever constitucional, homologando a Terra Indígena Morro dos Cavalos, o Senado Federal, usurpando a competência do Poder Executivo, pretende anular seu reconhecimento oficial, em clara afronta à Constituição Federal.
Ainda em 2016, o Supremo Tribunal Federal (STF), por meio do Mandado de Segurança n.º 32.709/DF, rejeitou as acusações feitas sobre os procedimentos de demarcação da Terra Indígena, reconhecendo a legalidade do procedimento de demarcação conduzido pela FUNAI. Esse precedente jurídico deveria encerrar qualquer tentativa de questionamento administrativo e político da demarcação.
No entanto, o Senado, ao aprovar o projeto que tenta sustar a homologação, desconsidera a decisão do STF, atropela o devido processo legal e reabre um ciclo de perseguições e insegurança para os povos indígenas.
O artigo 2º do Decreto 1.775/1996 é um dos principais pilares do sistema jurídico de demarcação de terras indígenas no Brasil. Ele garante um processo administrativo baseado em estudos técnicos, antropológicos e históricos, e permite manifestações contrárias, assegurando contraditório e ampla defesa a terceiros eventualmente interessados.
Sua revogação, como propõe o Senado, significa a implosão da segurança jurídica no campo da política indigenista, pois elimina o único procedimento estruturado de que o Estado brasileiro dispõe para cumprir sua obrigação constitucional de demarcar as terras que os povos indígenas tradicionalmente ocupam. Trata-se de uma grave violação ao artigo 231 da Constituição Federal.
É inaceitável que decisões que dizem respeito à efetivação de direitos fundamentais garantidos pela Constituição Federal sejam tomadas com base em interesses político-partidários e orientações ideológicas que desrespeitam a legalidade, a moralidade administrativa e os princípios constitucionais. A tentativa de sustar as homologações das TIs Morro dos Cavalos e Toldo Imbu e revogar o artigo 2º do Decreto 1.775/1996 configura um ataque direto à própria existência dos povos indígenas enquanto sujeitos de direito.
Ao se permitir que decisões técnicas sejam anuladas por pressões ideológicas com motivação eleitoral ou corporativa, o Senado Federal incorre não apenas em desvio de finalidade, mas compromete a integridade da política indigenista do Estado brasileiro, subordinando os direitos dos povos originários a interesses privados e conjunturas políticas momentâneas.
Diante dos fatos expostos, o Centro de Trabalho Indigenista:
Repudia integralmente o Projeto de Decreto Legislativo que tenta anular as homologações das TIs Morro dos Cavalos e Toldo Imbu e revogar parte essencial do Decreto 1.775/1996;
Reafirma a legitimidade da Terra Indígena Morro dos Cavalos como território tradicional do povo Guarani Mbya;
Reafirma a legitimidade da Terra Indígena Toldo Imbu como território tradicional do povo Kaingang;
Alerta para os riscos de um precedente institucional que permite que decisões já consolidadas sejam derrubadas por pressões políticas;
Conclama os órgãos do sistema de justiça, entidades da sociedade civil, organizações internacionais e a sociedade brasileira a resistirem a esse novo ciclo de retrocessos autoritários.
Por fim, nos somamos ao movimento indígena que, por meio da Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (APIB) e da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY), está convocando uma mobilização nacional no dia 09 de junho, em defesa dos direitos indígenas.
Sem demarcação, não há democracia e não há futuro.
Centro de Trabalho Indigenista (CTI)