Guarani cantam e dançam em frente ao prédio da Procuradoria Regional da República da 3ª Região.

Guarani denunciam medida do governo Bolsonaro ao MPF

Documento entregue a Procuradorias Regionais para ser encaminhado ao Ministério Público Federal associa reestruturação de Ministérios a conflitos de interesse

Por Victoria Franco

Entre sopros curtos e constantes, a fumaça dos cachimbos foi envolvendo aos poucos o papel que David Karai Popygua, liderança da Terra Indígena Jaraguá (SP), tinha em mãos. Antes de ser entregue a duas Procuradorias Regionais da República em São Paulo, na última sexta (11), a nota jurídica preparada pela Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) e a Articulação dos Povos Indígenas no Brasil (Apib) para contestar a transferência da demarcação de territórios indígenas ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento foi benzida pelos Guarani.

Na presença dos indígenas – que vinham tanto do Jaraguá, quanto de aldeias do território Tenondé Porã, no extremo sul de São Paulo –, a entrada do Ministério Público Federal (MPF) na 3ª Região, próxima à Avenida Paulista, virou casa de reza: enfileirados, cantavam e alternavam os pés descalços para acompanhar o ritmo de um violão, tocado na vertical. À medida que os cantos embalaram o prédio, as nuvens tocaram o céu. E os trovões logo se misturaram ao ritmo. “Tupã kuery”, notavam os Guarani. A resposta de Tupã e seus auxiliares, divindades associadas às águas e trovoadas, não demorou para chegar em forma de chuva.

“Um direito a menos representa milhares de mortos. Viemos aqui hoje com muita fé entregar esse documento para que o MPF possa ingressar com uma ação contra a Medida Provisória (MP) 870, que representa o genocídio da nossa população”, introduziu David Karai. A mudança no processo demarcatório, anunciada no texto da MP, foi publicada no Diário Oficial da União no primeiro dia do ano pelo atual presidente e esvaziou as funções da Fundação Nacional do Índio (Funai), antes peça-chave na engenharia de demarcações. Agora, a tarefa de assegurar os direitos indígenas cabe à ex-presidente da Frente Parlamentar da Agropecuária na Câmara, Tereza Cristina Costa.

“A gente está aqui pelas crianças, o futuro do nosso povo. E pelos mais velhos, pelo direito de viver e ser enterrado no nosso território tradicional, junto com nossos antepassados. É uma tristeza para nós, mas a gente vai resistir. Temos bastante fé na nossa reza”, afirmou Paulo Karai, representante da Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) na Apib, que antes esteve na Procuradoria da República no Município de São Bernardo do Campo (SP) para entregar um documento semelhante.  A ação, iniciada às 10h no município do ABC paulista e às 14h na capital, integra a campanha #JaneiroVermelho, lançada pela Apib na última quinta (10) sob o mote “Sangue indígena: nenhuma gota a mais”.

“Essa é uma resposta rápida do movimento indígena às ações de um candidato que perpetua no discurso e na prática ideias colonialistas. Bolsonaro se negou a ouvir os indígenas, mas eles não se calaram e não vão se calar. Essa medida pode não só ampliar violações dos direitos indígenas em vários lugares no país, como também criar novos conflitos em áreas onde essa fase já foi superada trazendo novas formas de insegurança jurídica”, considerou o assessor jurídico da CGY, André Dallagnol.

Na capital, as lideranças foram recebidas pelas procuradoras regionais da República Paula Bajer, do Núcleo de Defesa dos Direitos dos Índios e Minorias, e Samantha Dobrowolski, que representava a procuradora-chefe da 3ª região. Segundo Paula, acolher o documento não é nenhum favor: “É o nosso trabalho. Está na Constituição receber essa nota e apoiar a defesa dos direitos indígenas”. Samantha reforça a legitimidade da luta indígena para assegurar o que está previsto na maior lei do país: “Temos que confiar que com diálogo e perseverança vamos avançar no sentido do cumprimento da Constituição”.

No documento, a Comissão Guarani Yvyrupa (CGY) argumenta: “tal transferência visa nitidamente acatar reivindicação da classe ruralistas, mas sobretudo, colocar interesses privados acima dos interesses coletivos de toda a coletividade indígena e não-indígena, visto que terra indígena é bem da União”. Para os indígenas, isso configura desvio de finalidade.

A MP ainda contraria a obrigatoriedade da realização de consulta livre, prévia e informada aos povos indígenas sobre qualquer medida que os atinja, direito assegurado pela Convenção nº 169 da Organização Internacional do Trabalho. A preocupação dos indígenas é que haja, a partir de agora, uma suspensão ou interferência política nos processos demarcatórios no país, apontando para um cenário ainda mais sombrio do que o do governo Temer, até então com o pior desempenho nas demarcações desde a redemocratização.

“Não é a luta armada que a gente enfrenta aqui, mas é a luta do papel, a luta da caneta”, destacou Sônia Ara Mirim, liderança na Terra Indígena Jaraguá. Ao acionar Procuradorias Regionais, os Guarani pedem que o Ministério Público Federal proponha uma ação contra a Medida Provisória 870 e instaure um inquérito para monitorar os processos demarcatórios conduzidos pelo Ministério da Agricultura, identificar possíveis irregularidades e tomar as medidas necessárias para a garantia dos direitos constitucionais dos povos indígenas no Brasil.